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Jornalismo

Os ângulos de um corpo segundo vários artistas

Diversidade é a palavra de ordem quando se trata de organizar um bom acervo de obras que retratam a figura humana. Assim, é possível ampliar o universo cultural do grupo e enriquecer suas produções

PorBeatriz Santomauro

01/04/2012

O beco- Francisco Brennand. Celso Pereira Júnior
O beco - Francisco Brennand | Dos traços rápidos e verticalizados do artista surge o corpo bem torneado de uma mulher - tema recorrente da obra do pernambucano. Ela se mostra ao mesmo tempo que se esconde.
Autorretrato - Emmanuel Nassar. Emmanuel Nassar
Autorretrato - Emmanuel Nassar | Um perfil no qual predomina o preto ocupa todo o enquadramento e destaca-se no fundo branco que o envolve. Manchas de luz emanam de alguns pontos do rosto, como a orelha e o nariz.
Sem título - Iberê Camargo. Acervo Documental Fundação Iberê Camargo
Sem título - Iberê Camargo | A figura, que parece solitária, está centralizada e ocupa toda a área vertical da obra. Os traços a mostram com pernas finas, nariz proeminente e mãos e pés desproporcionais.

Desde cedo, as crianças fazem tentativas de registrar o corpo humano. O chamado "boneco-palito" - que tem tronco, braços e pernas representados por traços e a cabeça por um círculo - é uma dessas manifestações. A figura ganha detalhes à medida que os alunos adquirem repertório por meio da observação de referências. Por isso, é fundamental deixar à disposição da turma o maior número possível de obras de diferentes artistas, épocas e lugares, além dos trabalhos dos próprios colegas.

Os estudantes precisam saber, por exemplo, que os egípcios representavam seus homens com o rosto de perfil, mas com olhos e tórax de frente, que os renascentistas davam muita importância à proporção e à simetria e que, para os barrocos europeus, era normal distorcer, aumentar ou diminuir as figuras humanas. "São milhares as maneiras de representar. Cada época desenha a sua imagem", escreve Edith Derdyk em O Desenho da Figura Humana (176 págs., Ed. Scipione, tel. 4003-3061, edição esgotada). No século 20, os artistas "passaram a brincar com suas próprias imagens com extrema liberdade", analisa Katia Canton em Espelho de Artista (56 págs., Ed. Cosac Naify, tel. 11/3218-1444, 39 reais).

Para escolher as obras a serem mostradas em sala, Moema Rebouças, professora da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), recomenda se pautar pela forma, selecionando registros diversos, como desenho, pintura e escultura. Hoje, é muito comum haver vários suportes numa mesma obra, como um desenho feito sobre uma fotografia.

A pedido de NOVA ESCOLA, a pesquisadora escolheu artistas de diversas regiões do país que representam o corpo humano de modos diferentes: o pernambucano Francisco Brennand, o paraense Emmanuel Nassar, o gaúcho Iberê Camargo (1914-1994), a paulista Tarsila do Amaral (1886-1973) e a goiana Ana Maria Pacheco (veja a seleção ao lado).

Os espaços mais indicados para ver obras de arte são museus, galerias e centros culturais. Além de serem silenciosos, esses ambientes têm iluminação correta para a contemplação, o que aproxima a obra e o espectador. É difícil, porém, que a escola consiga organizar visitas frequentes a esses lugares. Uma alternativa nesse caso é procurar reproduções de qualidade - disponíveis em livros de arte - e mostrá-las aos alunos, permitindo que as manipulem.

Outra grande aliada no trabalho é a internet. A Enciclopédia Itaú Cultural, os arquivos do Museu de Arte de São Paulo (Masp) e da Fundação Iberê Camargo (www.iberecamargo.org.br) e o Google Art Project apresentam bons acervos. De fácil acesso, eles trazem imagens em alta resolução, que podem ser aproximadas para a visualização de detalhes.

O que dizem o contexto e a vida do artista

Desde os primeiros anos do Ensino Fundamental, deve-se debater com a turma sobre as informações vistas numa obra. Para Edith, é nesse momento que o estudante começa a descobrir as noções de medida, de grandeza e de deslocamento dos objetos e a se interessar por elas.

O planejamento de Vera Simões, doutoranda na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e professora da EMEF Adevalni Sysesmundo Ferreira de Azevedo, em Vitória, contemplou essa etapa. Nas primeiras aulas dos 5º anos, ela queria exibir imagens que tivessem o Carnaval como tema e que retratassem pessoas. Procurou, então, em sites, levando em conta a época e o local em que os autores delas viveram, de que maneira representaram as figuras humanas e em que contexto elas estavam inseridas.

Dez reproduções foram escolhidas e projetadas em classe. Havia quadros do brasileiro Di Cavalcanti (1897-1976), do espanhol Pablo Picasso (1881-1973) e dos franceses Jules Chèret (1836-1932) e Etieenne Jeaurat (1699-1789). "Quis mostrar que, embora todas representassem pessoas e tratassem de uma mesma festa, a forma de fazer isso era diferente."

Ela analisou com a garotada os diversos elementos de cada obra, como a luz e a sombra. Observou ainda se as cores eram fortes ou pastel, se a imagem parecia ter movimento e se era realista, as roupas que cada um vestia e se os traços que contornam o rosto dos personagens eram suaves. "Apresentei os trabalhos e falei o que sei sobre eles e minhas impressões, mas estimulei todos a tirar suas próprias conclusões e decidir os que mais apreciavam. Os alunos prestam atenção em tudo e não têm tantas amarras como os adultos", explica.

Essa abertura permitiu que a sala debatesse e compartilhasse opiniões, enriquecendo o momento de apreciação. "Esse menino é feio. Parece que usa pijama com chapéu!", disse Leonardo Baltazar Wgiete, 10 anos, fazendo referência ao Arlequim, de Picasso. "Esse quadro parece aquele da Tarsila", disse Mateus Vargas Fraga, 10 anos, referindo-se à obra Baile Popular, de Di Cavalcanti e fazendo uma comparação com Morro da Favela, já estudada por eles. "Eu conheço esse pintor... Participou da Semana de 1922", afirmou Yves Afonso, 10 anos, também sobre Di Cavalcanti.

Outros notaram que havia muitos negros nas obras dele, diferentemente do que ocorria com as demais. Os estudantes discutiram sobre a época em que viveu cada artista e de que maneira sua trajetória pessoal e profissional se reflete na sua produção - dados interessantes para chamar a atenção durante a aula. Esse tipo de conversa, que inclui provocações aos alunos, é mais proveitosa do que uma análise meramente técnica do desenho do rosto, dos materiais usados ou do traço do pintor. Podem ser lançadas perguntas como: "De que época são esses artistas?" e "A representação fala sobre o local em que viveram?".

Com um amplo repertório na cabeça, é hora de produzir

Dois estudos - Tarsila do Amaral. Rômulo Fialdini
Dois estudos - Tarsila do Amaral | As imagens femininas de traços arredondados posam entre formas geométricas retilíneas. Reiterando a sua opção modernista, a artista realça planos e figuras, convidando-nos a interagir.
Sem título - Ana Maria Pacheco. Pratt Contemporary Art
Sem título - Ana Maria Pacheco | Dois focos de luz iluminam os cinzas e negros da obra. O da esquerda se volta aos adultos, mascarados ou animalizados. O outro ilumina a criança, no primeiro plano do desenho.

Ter contato com referências é muito diferente de ter modelos para copiar. "Os desenhos são o resultado de uma individualidade. Então, não se deve pedir que a turma refaça o que já foi criado por outro. Cada um tem uma história e uma razão para produzir o trabalho de determinada maneira", adverte Katia.

Pensando nisso, Vera pediu que os alunos desenhassem uma cena de pessoas no Carnaval. Visando prepará-los para a produção, a professora voltou a falar sobre estereótipo e "boneco-palito". Também recomendou que prestassem atenção em como as pessoas deveriam ser representadas, levando em conta o que já tinham visto e o contexto da festa.

Para Katia, representar figuras humanas - e o contexto em que estão - exige variadas habilidades. É preciso pensar no volume do nariz, da boca e dos olhos e planejar o desenho da orelha e o tamanho do corpo em relação ao espaço, por exemplo. É um exercício diferente, mas nem por isso mais ou menos complexo do que o de ilustrar temas como cenas históricas ou de natureza morta. "É comum as crianças dizerem que não sabem desenhar rostos. Em momentos como esse, costumo explicar que elas não devem ter a preocupação de reproduzi-los fielmente, como numa fotografia, mas pensar como pretendem esboçar sua estrutura, da maneira que conseguirem ou desejarem", afirma a professora.

Seguindo as orientações de Vera, os alunos criaram progressivamente as próprias maneiras de representar o corpo, sem se fixar, por exemplo, no "boneco- palito", que está longe de tudo o que uma figura humana pode transmitir.

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