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Jornalismo

A complexa equação da volta às aulas nas escolas

Com indicadores de saúde que permitam um retorno seguro, baseado em evidências científicas, e um planejamento de retomada cuidadoso, é preciso considerar o melhor interesse dos estudantes

PorAlessandra Gotti

06/10/2020

Foto: Jorge Araujo/Fotos Publicas

Seis meses se passaram desde a suspensão das aulas presenciais em março e o retorno às escolas ainda em 2020 é algo incerto para os cerca de 50 milhões de estudantes brasileiros da Educação Básica, especialmente os 40 milhões na rede pública.

No ápice dos fechamentos em abril, 91% dos estudantes do planeta foram afetados em 192 países. Já em setembro, o quadro era de retomada das aulas presenciais nas escolas, com a manutenção do seu fechamento em 46 países, afetando 47% dos estudantes no mundo.

Fonte: Estudo “Covid-19 e Reabertura das Escolas: Descrição da Evidência Científica Impactos sobre a Pandemia, Sócio Econômicos e Educacionais”, de autoria de Fabio Jung e Wanderson Oliveira.  

Com indicadores que começam a sinalizar que a pandemia está mais controlada em vários estados e municípios brasileiros, com a melhoria da taxa de ocupação dos leitos clínicos e das unidades de tratamento intensivo (UTIs) nos hospitais e a redução de novos casos e de mortes diárias, a discussão da volta às aulas presenciais ganha força.

No Amazonas, as aulas para os alunos do Ensino Médio foram reiniciadas em agosto. Em São Paulo, desde 8 de setembro as escolas da rede estadual puderam retomar as aulas presenciais para atividades de recuperação e acolhimento, de forma gradual, respeitando-se os protocolos de segurança, e condicionadas à autorização dos prefeitos. Tudo indica que os estados do Rio Grande do Sul, Pernambuco e Piauí reabrirão as escolas em outubro. No Rio de Janeiro a discussão foi parar na Justiça.

Há muita controvérsia em torno dessa pauta, o que é potencializado no contexto das eleições municipais que se avizinham. É uma discussão polarizada, em que muitos defendem o retorno das aulas somente em 2021, ou apenas quando houver uma vacina, e outros proclamam pela volta cautelosa e gradual das escolas agora, sobretudo após a flexibilização das medidas de isolamento, com a abertura de shoppings, restaurantes e bares.

O fato é que, independentemente do quando as escolas serão autorizadas a reabrir, o planejamento do retorno às aulas presenciais precisa estar no centro do debate agora. Isso porque planejar pressupõe estudar antecipadamente o cenário de uma ação ou atividade, definir os objetivos a serem alcançados e identificar os meios para o seu alcance. Isso demanda tempo, especialmente considerando o fato de que ninguém estava preparado para vivenciar uma pandemia.

Há inúmeras medidas que devem ser alvo de detalhado planejamento de ações e providências administrativas nos eixos de biossegurança (tais como aquisições de máscaras e outros insumos, adaptação das escolas, identificação dos profissionais da educação com risco à saúde, treinamento de pessoal, divulgação para a comunidade escolar), socioemocional, cognitivo e normativo que demandam tempo, diálogo intersetorial e articulação entre as instituições públicas e privadas.

Em um contexto de posições impermeáveis ao diálogo, perde-se a oportunidade de analisar a questão com serenidade e, especialmente, com foco nas evidências científicas e no complexo feixe de consequências para crianças e adolescentes de cada decisão tomada.

 O papel das evidências científicas

 O Brasil tem a possibilidade de se valer das experiências dos países que já retomaram as aulas presenciais nos últimos meses, a partir das evidências do que deu e do que não deu certo.

O estudo “COVID-19 e Reabertura das Escolas: Descrição da Evidência Científica Impactos Sobre a Pandemia, Sócio Econômicos e Educacionais”, de autoria do epidemiologista e ex-secretário Nacional de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, Wanderson de Oliveira, e do médico e pesquisador Fábio Jung, analisa a experiência de mais de 15 países que já retomaram as aulas e a literatura disponível sobre o assunto.

Apresentado em reunião da Comissão Permanente de Educação (Copeduc) do Grupo Nacional de Direitos Humanos do Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais de Justiça, em 22 de setembro, o estudo apontou que as principais medidas de controle envolvem: (i) um retorno gradual, com número limitado de alunos, em grupos fixos (bolhas); (ii) o distanciamento social, além do uso de máscaras; (iii) o escalonamento de horários; (iv) o uso de espaços abertos para atividades; (v) a lavagem de mãos a cada duas horas e limpeza dos espaços duas vezes ao dia e (vi) a triagem de sintomas, com isolamento de sintomáticos. É o que destacam Wanderson de Oliveira e Fábio Jung na síntese feita no quadro abaixo:

Fonte: Estudo “Covid-19 e Reabertura das Escolas: Descrição da Evidência Científica Impactos sobre a Pandemia, Sócio Econômicos e Educacionais”, de autoria de Fabio Jung e Wanderson Oliveira.

O estudo aponta que as crianças apresentam susceptibilidade significativamente menor à infecção pelo Covid-19 do que adultos e que a doença é menos agressiva nelas do que a gripe (influenza). Questão central nesse debate é a controvérsia em torno do papel das crianças na transmissão da covid-19. Segundo guia recentemente publicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), embora haja registro de casos excepcionais como Israel, a maioria das evidências de países que reabriram as escolas, ou nunca fecharam, sugere que elas não foram associadas a aumentos na transmissão da doença na comunidade.

Ressaltam, todavia, que a decisão das autoridades públicas de reabertura deve ser tomada com base no nível de transmissão local e precedida da implantação de plano detalhado de medidas de biossegurança. O trabalho intersetorial mais do que nunca é fundamental: educação e saúde devem trabalhar juntas.

É recomendável que as redes de ensino identifiquem estudantes, professores e outros profissionais da Educação em condição de risco de saúde. Essas pessoas devem permanecer em isolamento social em um primeiro momento. É importante ainda que os governantes, quando houver a efetiva disponibilização da vacina para a Covid-19, priorizem a imunização de professores e demais profissionais da Educação, assim como a dos profissionais da saúde, dada a essencialidade de ambas as áreas para a sociedade.

Por fim, independentemente de fazer parte ou não de grupo de risco de saúde, há certo consenso em torno do direito à opção dos pais e responsáveis por manter a sistemática de aulas não presenciais de seus filhos enquanto persistir a situação de calamidade pública devido à pandemia do novo coronavírus. É nesse sentido o enunciado elaborado recentemente pela Copeduc que, em breve, deve ser aprovado pelo Grupo Nacional de Direitos Humanos do Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais de Justiça. A pacificação desse entendimento é importante para garantir segurança jurídica à essa opção.

O papel da escola na rede de proteção da infância e juventude

Na análise de prós e contras da retomada das aulas presenciais, é preciso considerar, além dos aspectos de saúde, as demais consequências do fechamento das escolas.

A pesquisa “Impactos Primários e Secundários da Covid-19 em Crianças e Adolescentes” da Unicef, realizada pelo Ibope, aponta que durante a pandemia, aproximadamente um em cada cinco brasileiros com 18 anos ou mais passou por algum momento em que não tinha dinheiro para comprar comida quando os alimentos acabaram. Em um país desigual como o Brasil, em que 21 milhões de crianças brasileiras de zero a seis anos vivem em situação de pobreza ou extrema pobreza, não se pode esquecer que a escola é muitas vezes o local onde conseguem se alimentar de maneira adequada.

Além da insegurança alimentar, psiquiatras e psicólogos apontam efeitos da pandemia na saúde mental, como o aumento de ansiedade, estresse, agressividade e depressão em crianças e adolescentes devido à perda de entes queridos, à angustia do desemprego dos pais e mesmo pela impossibilidade de encontrar parentes e amigos em virtude do confinamento.

Como conduzir o retorno às aulas presenciais?

Muitas perguntas surgem no debate da reabertura das escolas. Neste curso, você vai saber como acolher os estudantes diante das experiências que viveram, de que forma pode envolver as famílias e o grupo de professores para fortalecer a escola e muito mais. 

A escola é não apenas o local por excelência de ensino e aprendizagem de conteúdos pedagógicos, mas também o espaço onde as crianças se socializam e desenvolvem competências socioemocionais para lidar com conflitos, sentimentos, tomar decisões e se relacionar com o outro.

Ademais, a escola desempenha um outro importante papel: faz parte da rede de proteção das crianças e adolescentes. O Estatuto da Criança e Adolescente incumbe os dirigentes das escolas a comunicar ao Conselho Tutelar os casos de maus-tratos envolvendo alunos.

A cifra oculta da violência doméstica é potencializada no contexto do isolamento social e da suspensão das aulas nas escolas. Durante os meses da pandemia as denúncias de violência contra crianças e adolescentes caíram 12% em comparação ao mesmo período em 2019. Segundo dados do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, foram registradas 26.416 denúncias pelo canal “Disque 100” entre março e junho deste ano, contra 29.965 no ano passado. O número de registros em 2020 é o segundo menor para o período em toda série histórica iniciada em 2011.

Por fim, é sempre bom reiterar a ampliação do risco de evasão escolar, já tão crítico no país. Como apontado no último artigo desta Coluna, pesquisa realizada pelo Datafolha, encomendada pelo Itaú Social, Fundação Lemann e Imaginable Futures, apontou que, conforme o tempo de isolamento social avança, o desafio da rotina de estudos e a desmotivação dos estudantes cresce, o que aumenta o risco da evasão escolar:

Fonte: Fundação Lemann 

Todo o impacto do fechamento das escolas precisa ser cuidadosamente sopesado. OMS, Unicef e Unesco têm exortado os governos a priorizar a reabertura de escolas, a partir de um detido planejamento com as cautelas de biossegurança necessárias.

Convém lembrar que a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e Adolescente, que completou 30 anos neste ano, adotam a doutrina da proteção integral e reconhecem que a criança, o adolescente e o jovem merecem proteção especial e têm absoluta prioridade na realização dos seus direitos. Essa prioridade pressupõe: 1. primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; 2. precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; 3. preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; 4. destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.

É, portanto, um imperativo legal colocar crianças e jovens no centro da busca da melhor solução nesse momento. Com indicadores de saúde que permitam um retorno seguro, baseado em evidências científicas, e um planejamento de retomada cuidadoso, é preciso considerar nessa complexa equação o melhor interesse dos estudantes.

Alessandra Gotti é fundadora e presidente-executiva do Instituto Articule. Doutora em Direito Constitucional pela PUC/SP. Consultora da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e do Conselho Nacional de Educação.

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