“Os cientistas brasileiros precisam se engajar mais com o futuro da ciência a partir da educação e da motivação da juventude”
Marcelo Gleiser, físico e astrônomo, fala sobre as mudanças provocadas na humanidade pela pandemia do novo coronavírus e defende a formação docente para traduzir o pensamento científico para estudantes de diferentes idades
Marcelo Gleiser é professor de Física e Astronomia em Dartmouth College, tem um canal sobre Ciência no YouTube e é autor dos livros "A Dança do Universo" e "A Simples Beleza do Inesperado" Crédito: Divulgação
Ainda na adolescência, o carioca Marcelo Gleiser foi seduzido pela ideia de se tornar um cientista – ainda que nunca tivesse tido contato com um. "Quando contei para meu pai que queria ser cientista, ele falou: Você não pode querer ser cientista no Brasil. Quem é que vai pagar você para ficar contando estrelas?'". Mesmo assim, Marcelo não desistiu da vontade e hoje é contratado com frequência por universidades, empresas e organizações diversas para palestras e projetos diversos.
Físico pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), , ele é mestre em Física pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutor em Física Teórica e Matemática pelo King's College, no Reino Unido. Professor titular do Dartmouth College, nos Estados Unidos, onde leciona desde 1991, fundou o Instituto de Engajamento à Interdisciplinaridade (ICE), em 2016. Um dos cursos mais populares do ICE leva o nome de "Física para Poetas" e pode ser definido como parte de um processo de evolução cultural e uma “busca para um entendimento mais profundo de que nós somos e do mundo ao nosso redor”, de acordo com o próprio Marcelo. Durante as aulas, discute com seus alunos ideias que foram compiladas por ele ao longo da carreira e da escrita de livros como "A Dança do Universo", que deu início à carreira de escritor e lhe rendeu o Prêmio Jabuti (Melhor Ensaio e Biografia), até os mais recentes - "A Ilha do Conhecimento: Os Limites da Ciência e A Busca Por Sentido" (2014), "A Simples Beleza do Inesperado" (2016) e "O Caldeirão Azul" (2019).
O professor, que apresentou a série "Poeira das Estrelas" no programa Fantástico, da Rede Globo, em 2006, tem usado sua voz para demolir mitos e passar uma mensagem que considera urgente. "A gente tem de começar a olhar para a Humanidade não como um bando de tribos, mas como uma tribo só: a dos seres humanos", diz. Segundo ele, a atitude belicosa em relação ao próximo – seja motivada por racismo ou por diferenças de opinião – não pode ter mais lugar no século 21. "Somos todos da mesma espécie e estamos nos autodestruindo por causa do tribalismo que nos divide, em vez de nos integrar".
Em 2019, foi o primeiro latino-americano a receber o Prêmio Templeton, considerado o "Nobel da Espiritualidade", em reconhecimento à sua contribuição com o diálogo sobre a construção entre ciências naturais e humanas. Ao mesmo tempo que é reconhecido internacionalmente e leciona numa universidade de renome, Marcelo não abandona o que também pode ser chamado de chão de escola, ainda que virtual: em seu canal no YouTube, promove conversas com jovens interessados em ciência e em suas opiniões sobre o homem e o universo. É com a ajuda dessa turma que espera ampliar a conversa sobre que país e que mundo queremos daqui em diante. Um de seus desafios atuais é fazer com que o pensamento científico tenha mais relevância do que teorias como o terraplanismo. "A Educação precisa ajudar o jovem a discernir o que é informação de desinformação", diz.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento norteador do que é direito de todos os alunos aprenderem, tem como uma de suas competências o Pensamento Científico, Crítico e Criativo. Qual o peso disso para que as novas gerações tenham contato com o pensamento científico e, portanto, desenvolvam a capacidade de olhar o mundo de forma mais crítica?
Essa é uma condição necessária, mas não suficiente. Juntamente com essa diretriz, é preciso formar os professores intensivamente no Brasil todo para que eles saibam como traduzir o pensamento científico para estudantes de diferentes idades. E de maneira interessante, lúdica, instigante, para que queiram aprender mais.
O que atrapalha o desenvolvimento da ciência e dos cientistas no Brasil?
Existem vários problemas com a ciência no Brasil. Um deles tem a ver com certo comodismo da comunidade científica em relação à importância de levar a ciência para as escolas e para a esfera pública. Os cientistas brasileiros precisam se engajar mais com o futuro da ciência a partir da Educação e da motivação da juventude. Em geral, eles têm pouco interesse e disponibilidade para ir a escolas públicas falar com as crianças. Isso é terrível. Outro problema, o mais óbvio deles no momento, é que o próprio governo não incentiva o desenvolvimento científico e a pesquisa científica nacional. O Brasil mantém, essencialmente, uma ideia colonial, uma visão de país cuja economia é baseada na agropecuária e na extração de minerais. O pensamento vigente é que se tivermos soja, cana-de-açúcar, vacas e porcos, ficaremos bem. Temos uma indústria extrativista, não voltada para a criação de novas tecnologias. Isso é extremamente grave. Por sua vez, com base neste modelo, temos menos investimentos na Educação científica e em laboratórios bem equipados nas escolas públicas, além de faltar divulgação científica por parte dos órgãos do governo e também da mídia. Países como Índia, China e Rússia estão em ascensão econômica justamente porque entenderam a importância de investir em pesquisa e no ensino da ciência. É só olhar para o que aconteceu no Japão e na Coreia do Sul, países que se reinventaram após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), e hoje são espetaculares nas áreas de tecnologia e ciência.
Segundo estudo do Observatório do Conhecimento, as universidades públicas brasileiras são responsáveis por mais de 95% da pesquisa científica feita no país. Esse é um resultado do investimento realizado entre 2010 e 2018. Com o descontingenciamento comandado pelo ex-ministro da Educação Abraham Weintraub, essas instituições e os pesquisadores estão enfrentando muitas dificuldades. Qual risco o Brasil corre com a perpetuação de uma política como essa?
Existe uma descontinuidade entre a visão do governo brasileiro e a direção para onde o mundo está indo. Quais empresas estão dominando o quadro econômico e em termos de influência internacional? São as companhias ligadas a tecnologias digitais. É óbvio que todo mundo tem de se alimentar, mas para criar realmente um país com autonomia e influência econômica daqui a cinco, dez, quinze anos, precisamos formar uma futura geração de cientistas e engenheiros. E isso não está acontecendo no Brasil. Ou se está, é de forma incompleta. A questão central é que país queremos construir para o futuro. Devemos acreditar ou não que o Brasil pode vir a ser um país de geração de conhecimento, e não só de consumo de tecnologia? Posto isso, nos questionamos: não temos tecnologias desenvolvidas aqui? É claro que sim. O Brasil tem um número muito pequeno de patentes, mas tem. Porém, se analisarmos que tipo de patentes, a grande maioria delas é da área agropecuária, tem a ver com a melhora da eficiência da produção de gado, de soja, etc. Nossas patentes não estão na área de tecnologias digitais, de computação quântica ou da exploração espacial.
A pandemia do novo coronavírus obrigou os professores a encarar aulas remotas por meio de ferramentas digitais como o Zoom, Padlet, Google Docs, e usar recursos com os quais nem todos estavam familiarizados. Isso é positivo em algum aspecto, vai impulsionar melhorias na Educação?
É preciso aprender a usar as ferramentas com as quais os jovens vão se relacionar melhor. Eles fazem parte da geração que nasceu completamente digital. Se queremos realmente criar uma Educação efetiva para a juventude, temos de falar sua língua e usar uma metodologia que seja eficiente. Para que isso aconteça, é preciso treinar os professores. Eu, por exemplo, aprendi a usar aulas pré-preparadas junto com minha apresentação nos cursos que leciono em Dartmouth. Não é um bicho de sete cabeças, mas você tem de aprender. É uma questão de se atualizar e de ter mecanismos de incentivo para isso a fim de tornar a Educação mais eficiente. Defendo que as escolas têm de fazer o que as empresas fazem: investir na atualização dos profissionais. Por exemplo: um psicólogo ou psicanalista nos Estados Unidos tem de fazer um curso de atualização na área em que atua anualmente. Isso acontece também em várias empresas: o profissional é exposto a novas tecnologias e aprende a implementá-las de modo eficiente no trabalho. Não há razão para que isso também não seja feito em Educação. Os professores deveriam ser atualizados pelas escolas e universidades para usar as novas tecnologias da melhor forma possível. Quem tem o discurso “Só gosta de ensinar no quadro negro”, está parado nos anos 1950.
A Inteligência Artificial (IA) vem sendo cada vez mais usada para nos ajudar com coisas simples do dia a dia, desde pedir ajuda em um site para encontrar uma receita culinária até para buscar ajuda médica para problemas de saúde mental. Mas a possibilidade dela chegar às escolas é vista por muitos professores como uma ameaça à carreira docente. Como professor, considera que esse medo tem fundamento?
A pandemia do novo coronavírus é um bom experimento em larga escala da questão da Educação online. Ela nos mostra que existe um outro modo relativamente eficiente de nos comunicarmos com os alunos, mas que jamais substituirá o contato direto com o professor na sala de aula. O que se vê em termos de Inteligência Artificial são programas executados por máquinas. Ainda que exista certo valor em criar um robô que possa dar aulas de Matemática, acho pouco provável criar uma inteligência artificial eficiente o bastante para se relacionar de maneira emocional com os estudantes e transmitir conhecimento. A lição que estamos recebendo agora sobre qual é a melhor forma de educar as pessoas de todas as idades evidencia a importância do ser humano e do contato direto. Aulas online funcionam? Sim, você consegue transmitir informação. Mas muita gente acha bem difícil falar de forma efetiva olhando para uma tela. Um novo fenômeno está sendo chamado de “estafa zoom” nos Estados Unidos, é o efeito da tensão de tentar "ler" pela tela a reação da outra pessoa. Somos uma espécie que se desenvolveu para se comunicar socialmente e uma boa parte da nossa comunicação vem do gesto, do olhar e do movimento do corpo. É uma linguagem que máquina nenhuma consegue fazer direito – pelo menos não num futuro próximo. Então, podemos usar máquinas como fonte de informação, porém não como apresentação de informação. Isso ainda é feito da melhor forma por professores bem preparados.
Seu discurso é muito marcado pela necessidade de, como seres humanos, nos enxergarmos como um coletivo. Apesar disso, tudo está muito dividido, nesta pandemia. Se eu acredito na Ciência e você, não, então somos inimigos. Existe alguma chance de mudança neste cenário polarizado?
Esta divisão sempre existiu, mas está sendo exacerbada agora porque a pandemia amplificou polarizações sociais. A pandemia tornou mais evidente também o fato de que as pessoas mais pobres são aquelas que vão sofrer mais por ter acesso à alimentação e à medicina mais precários, o que faz com que sejam muito mais frágeis ao vírus. Nesta parcela da população, pessoas negras (três em cada quatro entre os mais pobres, de acordo com o IBGE) certamente têm uma incidência maior da doença, algo que também acontece nos Estados Unidos. Isso está exacerbando a conversa sobre racismo e até a discussão sobre intolerância em gêneros e escolhas sexuais. São justamente nestes momentos de tensão social, como é a pandemia, que vemos oportunidades de mudança.
Como reagir ao que está acontecendo, então?
Existem várias maneiras de reagir a uma pandemia, a maioria delas é negativa. Você pode entrar em pânico e achar que é o fim do mundo, que tudo está perdido e a que a espécie humana vai acabar. Outra forma de reagir é negar a realidade como vemos acontecer no Brasil e nos Estados Unidos - por isso, o grande número de casos de Covid-19 nos dois países. Aliás, por que isso acontece no Brasil e nos Estados Unidos? Porque são os dois países em que mais claramente a liderança confunde as pessoas ao adotar uma posição contra os fatos apresentados por cientistas (caso do isolamento e distanciamento social, que levaram ao fechamento de empresas e comércios, como forma de evitar o contágio e propagação do vírus). Quando você tem líderes políticos como Donald Trump nos Estados Unidos e Jair Bolsonaro no Brasil contradizendo o que cientistas afirmam, as pessoas falam “Mas o presidente falou… Caramba, ele é nosso o modelo de liderança!”. E o que acontece? Eles acabam causando a desgraça que vemos hoje.
As mudanças a que se refere são para pior ou para melhor?
Toda pandemia possui historicamente um lado trágico, mas olhando para o passado, vemos que, depois delas existiram momentos de criatividade muito forte. Após a peste negra na Europa no século 14, houve a Renascença (período da história europeia entre os séculos 14 e 16). Depois da gripe espanhola, com ordens de grandeza muito maiores do que estamos vendo agora (dados indicam que pelo menos 50 milhões de pessoas foram vítimas da doença entre 1918 e 1920), aconteceu o movimento da Arte Moderna (entre o século 19 e meados do século 20), a queda dos impérios na Europa, uma reinvenção da democracia nos Estados Unidos e, novamente, uma tragédia, a Segunda Guerra Mundial. Parece que a gente não aprende. Minha fala em relação ao que está acontecendo tem a ver com o que chamo de fim do tribalismo, a necessidade de a gente terminar essa conversa de que é sempre uma tribo contra a outra. Essa tem sido a conversa da humanidade desde o início da nossa espécie. Há 20 mil anos, a visão de tribo era muito importante para a sobrevivência porque uma tribo se protegia contra predadores e do ataques de outras tribos, dividia comida e cuidava dos pequenos. Ela se definia por meio de um código de comportamento ético e moral, que variava a cada tribo. A questão agora é olhar para a Humanidade não como um bando de tribos, mas como uma tribo só: a tribo dos seres humanos. O que tento mostrar, e vou continuar escrevendo livros sobre este assunto, é que precisamos nos redefinir como uma única espécie, coexistindo num planeta com outras formas de vida. A pandemia do novo coronavírus está exacerbando nossa fragilidade e fazendo com que isso seja mais urgente. Quanto mais cedo nos dermos conta disso, melhor será o futuro das próximas gerações.
Temos hoje no mundo movimentos a favor dos recursos naturais, da preservação do planeta e também os que defendem cuidarmos melhor uns dos outros. E temos exploração ambiental, se fala de destruição de ecossistemas e violência. Como serão os anos depois da pandemia?
Não sou futurista, vidente nem profeta, é muito importante fazer essa ressalva. Mas acredito que os próximos seis meses vão ser essenciais para o mundo. Duas coisas grandes vão acontecer: muito provavelmente teremos uma segunda onda de crescimento de casos do novo coronavírus, entre setembro e outubro, e as eleições para presidente nos Estados Unidos, em novembro. Os modelos de epidemiologia apontam essa nova onda, que vai exacerbar problemas econômicos e afetar o poder aquisitivo e as oportunidades de emprego. E, em novembro, estaremos diante de uma bifurcação fundamental, que tem a possibilidade de mudar o mundo porque o que acontece nos Estados Unidos tem o poder de se espalhar. Se Trump for reeleito, o mundo vai cair em trevas mais terríveis. Se Joe Biden vencer, viveremos uma onda de renascença fantástica. Não porque ele é um visionário, mas porque representa movimentos de solidariedade, de respeito ao próximo, de compreensão da nossa fragilidade, de entendimento da nossa relação com o planeta e de outras formas de vida. É uma oportunidade de crescimento global, de crescimento como espécie.Se conseguirmos tirar o governo nefasto de Trump, novas ondas vão se alastrar mundo afora, provocando uma transformação para o bem muito profunda nos próximos anos.
Qual é o papel da Educação nessas mudanças?
É o mais fundamental de todos. A Educação é o caminho para a liberdade. Ela nos mostra que cada indivíduo tem o poder de crescer e de se tornar um agente de transformação. E você só faz isso quando aprende a pensar criticamente sobre o que está acontecendo e tem um ensino que o empodera intelectualmente para viver a vida que tem o potencial de viver. Sem Educação, assinamos nossa sentença de morte.