Qual a relação entre construção da cidadania e saúde mental?
Para especialista, incentivar práticas de ação política pode favorecer o desenvolvimento socioemocional de crianças e adolescentes
19/12/2019
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Jornalismo
19/12/2019
Somos seres de linguagem e de sociedade. Falar e se expressar são atos fundamentais para a organização social, para o desenvolvimento do pensamento, da inteligência e dos sentimentos. Com esse pressuposto, agir politicamente é também vivenciar a possibilidade de dizer algo, de aprender a pensar criticamente, de ter direitos respeitados, e de compreender a dimensão do privado e do público. Quando uma pessoa não tem a possibilidade de vivenciar essas dimensões, as consequências podem ser sentidas de diferentes maneiras, inclusive na saúde mental.
Aristóteles, filósofo grego, apresenta a ideia de que o homem é naturalmente político, ou seja, é um ser que necessita de coisas e dos outros, sendo, por isso, um ser carente e imperfeito que busca a comunidade para alcançar a completude. A política aristotélica, portanto, rejeita a tese liberal moderna de que o indivíduo é mais importante do que a família ou a sociedade. Dessa forma, quando a pessoa não se sente pertencente à uma coletividade, em que possa ser ouvida ou que possa falar, se sente tolhida, sem lugar e sem sentido e isso interfere diretamente na saúde mental.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) define como saúde mental o estado de bem-estar, no qual o indivíduo é capaz de usar suas próprias habilidades, recuperar-se do estresse rotineiro, ser produtivo e contribuir com sua comunidade. A promoção de saúde está relacionada à uma concepção de bem-estar geral, ao pensamento, aos sentimentos, às condições e às manifestações desses aspectos na vida. Dessa maneira, visa garantir o acesso a condições básicas de existência, que envolvem, por exemplo, habitação, alimentação, saúde, escola, trabalho, cultura etc.
O termo cidadania vem sendo usado no discurso político educacional, no sentido de conquista de uma mentalidade reivindicatória de direitos pessoais. A cidadania é uma característica pessoal adquirida por meio do intercâmbio social, capaz de provocar atuações éticas respeitosas e autônomas. É, portanto, a consciência autônoma da responsabilidade pela sociedade como está organizada e por sua organização.
Para Jean Piaget, biólogo e psicólogo suíço, a autonomia é adquirida da mesma maneira que a maturidade cognitiva. Não se trata, portanto, de um aspecto agregado à personalidade, mas acima de tudo de um aspecto com o qual o indivíduo se identifica. Ser autônomo moralmente significa poder analisar criticamente a obrigatoriedade das normas. Além disso, o juízo moral não é inato. Ele se determina por quatro fatores do desenvolvimento mental: maturação, experiência, interação social e regulação. A participação da escola no processo da educação moral dos seus alunos é essencial, tanto para o alcance maturacional como no nível da autonomia moral.
O ato de poder se expressar, por meio da fala ou escrita e de vivenciar as artes e espaços culturais favorecem o desenvolvimento para além das competências. Dessa forma, o planejamento de momentos para que os alunos elaborem e expressem ideias, formulem pensamentos sobre diversos temas por meio de atividades sistematizadas (de sala de aula) ou extraclasse geram benefícios para a formação de identidade cidadã e, ainda, desenvolvem competências socioemocionais.
Existem diversas teorias e estudos acerca do que, de fato, seriam as chamadas habilidades e competências socioemocionais. Um dos conceitos mais aceitos até hoje é o modelo de personalidade dos Big Five. De acordo com esta teoria, formulada por Gordon Allport, essas habilidades podem ser agrupadas em cinco grandes blocos: abertura a novas experiências, consciência, extroversão, cooperatividade e estabilidade emocional. Nessa proposta de desenvolvimento de habilidades, o essencial é formar indivíduos que saibam lidar consigo mesmo (autopercepção, autoestima, resiliência), com os outros (comunicação, relacionamento) e com desafios (criar estratégias, escolha socialmente responsável).
Diante disso, para a criança ou o adolescente é fundamental aprender a escolher a melhor ação para si e para o outro, analisando as consequências positivas. Dessa maneira, não é recomendável que os professores coloquem julgamentos sobre a própria percepção ou análise diante de uma situação. É preciso apresentar para os estudantes questionamentos sobre consequências e estratégias adequadas para lidar com opiniões, escolhas, sentimentos e ações.
Paulo Freire nos reforça a ideia de que a educação é prática indispensável aos seres humanos tanto como processo de conhecimento como também de formação política, de manifestação ética, de capacitação científica e técnica. Quanto ao papel dos educadores, esses possuem grande importância, já que enquanto mediadores são os responsáveis por avaliar os resultados do processo de ensino e aprendizagem no contexto maior.
Como formar alunos com tais competências?
Os gestores da escola podem elaborar um plano de ação que enfatiza a formação de alunos com tais competências. A inserção de disciplinas como filosofia, ética e cidadania ou política no currículo obrigatório ou ainda incorporar disciplinas eletivas e cursos opcionais são opções interessantes. Garantir que sejam planejadas ações específicas para o desenvolvimento da expressão e do pensamento crítico nos estudantes se torna, dessa maneira, essencial.
Vale comentar que é importante que pais e professores também criem contextos para que as crianças e os adolescentes vivenciem situações complexas, utilizem a comunicação empática, gerenciem frustrações e recebam sanções disciplinares. Ou seja, além das demandas de aprendizagem formais, são necessárias outras vivências para possíveis intervenções educacionais e pedagógicas. Na escola, os professores e colaboradores em geral são pessoas fundamentais no desenvolvimento desse processo.
Nas ações do dia a dia, podemos listar algumas ideias que podem ser aplicadas na escola:
- Promover atividades que visam a cooperação nos espaços de convivência do cotidiano escolar (como a cantina, a quadra, e o pátio, por exemplo);
- Ouvir e expressar opiniões e críticas de maneira respeitosa, mediando possíveis conflitos;
- Verbalizar os próprios comentários sobre notícias e fatos, considerando o interlocutor e tendo como base a empatia;
- Ensinar o aluno a considerar a fala do colega, tanto nos momentos de concordar, como nos de discordar.
Nos momentos mais sistematizados e planejados, além dos conteúdos sobre política nas aula de história e geografia, por exemplo, pode-se planejar atividades voltadas para evidenciar aspectos sociais e políticos como:
- Aulas e palestras com temas diversos, tais como consumo e sustentabilidade, constituição federal, funções dos poderes executivo, legislativo e judiciário etc;
- Aulas com estratégias metodológicas de debates ou outras propostas definidas democraticamente juntamente à turma de alunos;
- Produção de texto sobre assuntos relacionadas às questões sociais, que respeitem a diversidade e os direitos humanos;
- Ações comunitárias que favoreçam a possibilidade de plano de ação com diferentes realidades sociais (em orfanatos, com pessoas em situação de rua, asilos e creches);
- Atividades sobre as profissões e seus impactos sociais versus retorno econômico e financeiro.
Outra maneira que pode ser considerada é a possibilidade de promover momentos para os alunos vivenciarem a representatividade. Eles podem:
- Desenvolver projetos de autoria própria;
- Organizar e participar de debates e palestras;
- Realizar simulação de eleições de representantes ou de pautas de interesses próprios;
- Liderar e participar da formação de grêmios estudantis, coletivos e clubes diversos;
- Participar em movimentos estudantis ou manifestações com outras instituições.
Martha Maccaferri é psicóloga e pedagoga, com especialização em Intervenções Sistêmicas e Mediação de Conflitos pela PUC. Trabalha como Coordenadora Educacional do Ensino Médio da Escola Móbile, em São Paulo.
REFERÊNCIAS
A Política, de Aristóteles, Ediouro, 1988, 15 ed.
Política e Educação, de Paulo Freire, Ensaios Paulo Freire, Cortez, 2001
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