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Jornalismo

Fim da estabilidade de servidores públicos: como PL poderá afetar os professores?

NOVA ESCOLA conversou com especialistas em Educação e Direito para entender os efeitos da medida

PorCamila Cecílio

25/07/2019

Sessão para votar parecer do relator, senador Ricardo Ferraço, referente ao projeto da reforma trabalhista, na Comissão de Assuntos Sociais
Uma das sessões da Comissão de Assuntos Sociais Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

A Comissão de Assuntos Sociais (CAS) do Senado aprovou neste mês o Projeto de Lei Complementar nº 116 de 2017 que regulamenta a demissão de servidores públicos concursados e estáveis por insuficiência de desempenho no trabalho. O PL, de autoria da senadora Maria do Carmo Alves (DEM-SE), deve passar por outras comissões antes de ser levado ao Plenário, embora haja um requerimento de urgência apresentado pela relatora, senadora juíza Selma Arruda (PSL-MT), para que a matéria seja apreciada o quanto antes. 

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Mas, se aprovada pelo Congresso Nacional, quais serão os impactos dessa medida na vida dos professores? A pedido de NOVA ESCOLA, a presidente da Comissão Especial de Direito Constitucional da Ordem dos Advogados de São Paulo (OAB-SP), Luciana Andrea Accorsi Berardi, analisou o Projeto de Lei para verificar pontos que possam afetar a carreira dos profissionais da Educação.

O que prevê o PL 116/2017?

A advogada explica que o PL é constitucional, uma vez que pretende regulamentar a avaliação periódica de desempenho, incluída na Constituição de 1988 por meio da emenda constitucional 19/1998. Atualmente, há três possibilidades de o servidor público estável perder o cargo: sentença judicial transitada em julgado, Processo Administrativo Disciplinar (PAD) e avaliação periódica de desempenho.

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Em regra, segundo a jurista, essa avaliação já é realizada em diversos órgãos públicos por exigência constitucional. O que ocorre, no entanto, é a ausência de uma lei complementar que regulamente o processo. “Isso fez com que muitos órgãos públicos acabassem fazendo suas regulamentações por conta própria, de forma que o processo de demissão se tornasse bastante autoritário em alguns casos”, observa.

Por outro lado, Luciana critica a quantidade e a forma como as discricionariedades são colocadas no PL. “Toda carreira tem suas especificidades e usar um projeto de lei para regulamentar de forma geral, ok. Mas acredito que as carreiras precisam ter projetos de lei específicos que sejam tanto municipais quanto estaduais, afinal, não dá para usar os mesmos critérios para todas, por exemplo, um professor e um agente administrativo. São situações diferentes e, por isso, quanto menos critérios discricionários, melhor”, afirma a advogada.

Critérios de avaliação

Autor do livro País mal educado: Por que se aprende tão pouco nas escolas brasileiras?, o escritor Daniel Barros reforça a necessidade de se criar requisitos claros para avaliar os professores. “Talvez esse seja o maior risco: se esses critérios não forem suficientemente específicos e não variarem de acordo com os tipos de profissionais do setor público, podem passar por um senso de injustiça”, garante. Para ele, não dá para avaliar um professor da Educação Básica da mesma forma que se avalia um funcionário do setor financeiro de uma determinada secretaria.

Para ele, a nova lei pode ser um bom instrumento para a Educação, mas desde que tenha cunho formativo e não punitivo. Barros cita como exemplo o caso do Chile. O país desenvolveu nos últimos anos um sistema de avaliação de professores mais formativo do que punitivo. Por ano, uma aula é filmada e avaliada por uma comissão de especialistas em didática. Depois, a equipe se reúne com o professor para dar o feedback necessário, apontando o que ele está fazendo bem e o que precisa ser melhorado. “Essa avaliação não tem viés punitivo, menos de 1% dos professores são, eventualmente, punidos e demitidos, o que só acontece no caso de sucessivas avaliações negativas e resistência à adaptação da sua prática frente a evidências claras de que há problemas na capacidade de ensinar”, afirma.

O especialista observa que é necessário ter muito cuidado na definição dos critérios de avaliação para que seja uma medida positiva para os profissionais da Educação. De acordo com Daniel Barros, se a lei for aplicada como instrumento formativo, como ocorreu no Chile, há um potencial benéfico muito grande para os professores. Mas, se for identificada como uma forma de puni-los, persegui-los e caça-los, isso poderá gerar revolta e resistência por parte dos profissionais e sindicatos. “É fundamental fazer uma construção dessa política como algo para melhorar o desempenho dos funcionários, para dar retorno específico de como eles podem se desenvolver, mas não só como um instrumento de punição”, completa.

Outro ponto que preocupa e pode afetar diretamente a vida dos professores, segundo Luciana Berardi, é a descrita no Artigo 23 do PL, que diz que os afastamentos por saúde ou por questões psicossociais não impedem a exoneração dos servidores estáveis. Uma pesquisa online realizada pela Associação Nova Escola com mais de cinco mil educadores, entre os meses de junho e julho de 2018, identificou que 66% das professoras e professores já precisaram se afastar do trabalho por questões de saúde. O levantamento também mostrou que 87% dos participantes acreditam que o seu problema é ocasionado ou intensificado pelo trabalho.

“Essa avaliação de saúde estará atrelada à avaliação de desempenho. Isso demonstra que se não houver um critério claro, muitos professores que emendam um atestado a outro ou que estão afastados por questões de saúde poderão, mesmo doentes, serem exonerados. E professores com doenças classificadas “incuráveis” ou incapacitantes poderão ser aposentados de imediato por invalidez”, explica a advogada. 

Carreira em risco

O diretor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), professor Marcos Garcia Neira, considera o PL como uma medida prejudicial à Educação. Para ele, é fundamental entender que o professor passa por vários momentos da vida profissional. “É uma profissão que vai se qualificando ao longo do tempo, quanto maior a permanência do professor na escola, melhor será a escola. Temos que lutar pela permanência dele”, avalia.

O professor cita, ainda, que pesquisas mostram que instituições de ensino que têm um corpo docente estável alcançam maior desempenho, identidade técnica do grupo e melhor relação com a comunidade, por exemplo. “Então, qualquer projeto de lei que acabe com essa estabilidade pode causar prejuízos ao ensino porque vamos correr o risco de as pessoas serem demitidas ou substituídas, às vezes sem os critérios necessários para aquele cargo”, defende.

Além disso, Marcos chama atenção para a atratividade da carreira diante do atual cenário da Educação no Brasil. Isso porque o governo Jair Bolsonaro anunciou neste ano uma série de cortes na Educação, o que provocou centenas de manifestações pelo país. “Pensando nessa linha, todos esses ataques diminuem sensivelmente a atração pela carreira de professor. Se o professor não olha com bons olhos para sua carreira, nós corremos o risco de não atrair mais profissionais e de perder os que já temos. O professor precisa saber que terá tempo e condições de se aperfeiçoar”, argumenta.

Em seu livro, Daniel Barros dedica três capítulos à carreira de professor nos quais fica evidente a baixa atratividade pela profissão. A partir das pesquisas realizadas e consultadas para a obra, o escritor aponta que os cursos de formação de professores, de modo geral, têm uma série de problemas, como baixa carga didática se comparada a de outros países, pouco estímulo a práticas de salas de aula e estágios, por exemplo.

A situação pode piorar caso o Projeto de Lei Complementar 116/2017 passe pelo crivo do Congresso, segundo o professor Marcos Neira. “Nós temos uma legislação que obriga investimentos na carreira, mas sempre tem alguém para dizer ‘tem muito professor que não faz nada’, mas não estamos falando dos maus profissionais. O meu receio é que, como a gente sabe como funciona, há o risco de que cada governante mude o quadro ou até mesmo use isso como moeda de troca em campanhas eleitorais”, diz. 

O que pensam os parlamentares?

A estabilidade dos servidores públicos já vem sendo discutida pelo Congresso também por meio da PEC 6/2019, que modifica as regras da Previdência. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), chegou a afirmar que as mudanças no funcionalismo público estão na lista das próximas prioridades do Legislativo. 

O senador Lasier Martins (Podemos-RS), defensor do PL, disse que não se trata de uma ameaça aos servidores, mas uma medida que reconhece a hipótese da meritocracia, com incentivo aos servidores. Já os senadores Paulo Paim (PT-RS) e Zenaide Maia (Pros-RN) manifestaram preocupação com o tema e se posicionaram contra a proposta. Uma das preocupações dos parlamentares seriam os critérios de avaliação. 

A expectativa é de que o texto chegue ao Plenário nas primeiras semanas de agosto. 

 

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