Rocío García-Carrión: “As escolas que se abrem para a comunidade conquistam melhorias”
Pesquisadora defende as comunidades de aprendizagem e as tertúlias dialógicas como forma de transformar a Educação
PorPaula Salas
01/08/2019
Compartilhe:
Jornalismo
PorPaula Salas
01/08/2019
Quando descreve as comunidades de aprendizagem e o impacto transformador que podem ter na Educação, Rocío García-Carrión pontua cada argumento com igual paixão e rigor científico. Pesquisadora da Universidade de Deusto, na Espanha, Rocío esteve em São Paulo a convite do Instituto Natura, para compartilhar as experiências com as tertúlias literárias, uma das estratégias adotadas pelas comunidades de aprendizagem.
Na entrevista a seguir, a especialista fala sobre as experiências e a importância da participação da família e da comunidade na escola.
NOVA ESCOLA O que é a aprendizagem dialógica?
ROCÍO GARCÍA-CARRIÓN É uma concepção de aprendizagem que se fundamenta em pesquisas científicas. Descobriu-se que a chave da aprendizagem e do desenvolvimento é a interação social mediada pela linguagem. Também inclui outro consenso na comunidade científica: a participação da comunidade. Aprende-se em interação com pessoas muito diversas. Ela se diferencia de outras concepções por ter demonstrado melhorar ao máximo nível todas as dimensões de aprendizagem e de desenvolvimento cognitivo, social e emocional, a partir do impacto social. Há também o aval científico: a melhor escola da Catalunha em 2017 foi o colégio Joaquim Ruyra de L’Hospitalet (pertencente à comunidade de aprendizagem há sete anos), onde 95% dos alunos são imigrantes e 92% das famílias estão em situação de pobreza. Eles obtiveram nas provas regionais resultados que dobravam a média da região, ou seja, dobraram os resultados das escolas de elite.
NE: Paulo Freire, referência na educação dialógica, tem sido alvo de ataques constantes no Brasil. O que você pensa a respeito?
RGC: Na comunidade científica não há discussão a respeito das contribuições que Paulo Freire fez à Educação. No ano passado, comemoramos os 50 anos do (livro) Pedagogia do Oprimido e foram feitas homenagens nas melhores universidades do mundo.
NE: A Espanha é referência nas políticas para melhora no clima escolar. Por que há tanta ênfase a essa questão?
RGC: Temos visto que o problema da violência e do clima escolar é uma grande preocupação que não podemos ignorar. Por muito tempo investigamos o que acontece na ponta do iceberg, mas, para erradicar a violência, é preciso entender a causa. Uma questão-chave é entender a sociedade como resultado da interação: a pessoa que exerce a violência não está sozinha: estabelece-se um discurso que vende a violência como um sucesso social – se não rompermos com a ideia, é difícil mudar. Outro ponto fundamental é abordar o tema a partir de um modelo dialógico da prevenção da violência, no qual a comunidade participa para criar um consenso a respeito das normas.
NE: Muitas escolas brasileiras estão em zonas de conflito, com altos índices de criminalidade. Como construir comunidades de aprendizagem nessas situações?
RGC: No Brasil, tenho colegas que realizam o projeto em favelas. Nesses contextos é onde (a comunidade de aprendizagem) é mais necessária. A possibilidade de dialogar e dar esperança de um futuro melhor é a única solução viável. Quando criamos um espaço livre de violência em escolas em áreas de conflito e os alunos se posicionam a favor da vítima e contra a pessoa que exerce a violência, o grupo muda e a escola se torna uma referência. Crianças que poderiam ficar presas na rede de criminalidade se sentem melhor em um contexto livre de violência, transformam suas interações e, quando saem, escolhem pessoas que atuam diferente.
LEIA MAIS: Não precisamos escolher entre competências cognitivas e socioemocionais
NE: Muitas escolas queixam-se da dificuldade de engajar a família na aprendizagem dos filhos. Quais estratégias podem ser utilizadas?
RGC: As famílias participam quando veem impacto direto na melhora da sua vida e na de seus filhos. Basta visitar as comunidades de aprendizagem e ver pais, mães e avós participando dos grupos interativos, fazendo tertúlias literárias dialógicas em sua própria formação. O processo científico nos diz que há formas de participação educativa na tomada de decisões que empoderam as famílias e transformam suas relações com a Educação e com seus filhos. As escolas que se abrem conquistam melhorias. As famílias ciganas, por exemplo, que são um grupo minorizado na Espanha, participaram da formação de familiares em tertúlias literárias dialógicas e conseguiram passar na prova de acesso à universidade. É um grupo no qual só 1% chega à universidade: agora temos 15 pessoas ciganas adultas estudando na Catalunha. Essa forma de participar garante que transformações complexas sejam possíveis.
NE: Como funcionam as tertúlias literárias dialógicas?
RGC: São práticas que demonstraram desenvolver o altruísmo, a solidariedade e a empatia ao máximo, enquanto são lidas e debatidas as grandes obras da literatura. Sabemos que esses livros trazem um impacto cognitivo e de valores que não é possível com outro tipo de literatura. Os alunos e as famílias decidem qual livro lerão, com o compromisso de escolher uma ideia ou frase que lhes chame a atenção ou queiram comentar. Então, quando se encontram na tertúlia literária, o educador senta-se em um círculo, em condição de igualdade com os demais, e media o diálogo entre os alunos. Todas as ideias são incluídas, desde que colaborem com seus argumentos em um diálogo igualitário e de respeito. Elas começaram a ser feitas na alfabetização de adultos, mas hoje estão no Ensino Médio, Fundamental e até na Educação Infantil. A tertúlia permite às crianças desenvolverem um nível emocional muito profundo: compartilham o que sentem, debatem sobre amor, amizade, justiça, assédio e bullying ao mesmo tempo que conhecem as grandes histórias da humanidade. Eles conectam suas vidas com esses valores, por isso é uma prática que observamos que tem impacto. As crianças desenvolvem comportamentos mais altruístas, solidários e empáticos por meio da literatura e em diálogo com o grupo.
NE: Qual é o papel do professor nas comunidades de aprendizagem?
RGC: É um projeto de responsabilidade compartilhada, no qual todos são importantes para garantir a aprendizagem, a convivência e melhora dos resultados de todas as crianças. Como responsável pedagógico, o professor compromete-se a conhecer, ler e debater as evidências científicas. Não apenas para sua formação, mas para levar para toda a comunidade. Esta entra na escola, conhece os princípios da aprendizagem dialógica e se compromete a realizar o sonho de escola que todos desejam. Esse compromisso é o que garante interações de maior qualidade para desenvolver a aprendizagem e a convivência ao máximo.
NE: E qual é o primeiro passo para construí-la?
RGC: O primeiro passo é conhecer as evidências científicas e que o corpo docente e as famílias saibam que não vão testar nada novo. Isso dá muita segurança. Com isso sabem que terão todos os recursos para melhorar a escola e o entorno. A seguir, pensam como vão colocar essas ferramentas em prática. Por isso, as comunidades de aprendizagem funcionam em diversos contextos: elas pegam evidências comprovadas e as colocam em diálogo com cada comunidade. Depois, começa uma fase muito bonita, que é sonhar a escola que desejam, mas é um sonho que vai de mão dada com a ciência. O sociólogo Ramón Flecha explica que melhorar uma realidade sem sonhos é impossível. Esse sonho cria sentido na comunidade.
COMUNIDADES DE APRENDIZAGEM
Saiba mais sobre a iniciativa, nascida em Barcelona na década de 1990:
Estão presentes em 8 países
319 adesões às comunidades de aprendizagem na Argentina, Colômbia, Chile, Peru e México em 2018
No Brasil, há 688 escolas
PARA SABER MAIS
Acesse os materiais disponibilizados no site bit.ly/comunidade-de-aprendizagem
Fotos: Renato Stockler/NOVA ESCOLA
Últimas notícias