No início dos anos 1990, a Educação no Chile passou por um movimento semelhante ao que vivemos hoje no Brasil: reforma do Ensino Médio e reestruturação do currículo da Educação Básica. “O Chile tem atuado quase obsessivamente sobre seu sistema escolar desde a transição [da Ditadura Militar, de 1973 a 1990] para a democracia. É um quarto de século de políticas que atuam sobre todo o sistema educacional”, afirma Cristián Cox, sociólogo e professor da Faculdade de Educação da Universidade Diego Portales, no Chile. Cristián acompanhou de perto esse movimento. Ele ocupava o cargo de coordenador da Unidade de Currículo e Avaliação do Ministério da Educação chileno e foi um dos responsáveis por liderar a reforma educacional no país.
Quase três décadas depois, a Educação do Chile se destaca como a melhor entre os países da América Latina. Na avaliação divulgada em 2016 do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), o país ocupava o 51º lugar em Matemática, 47º em Leitura e em Ciências. Enquanto o Brasil ocupou, respectivamente, os 58º, 55º e 59º lugares (participam da prova também Peru, Colômbia, Argentina, Costa Rica, Uruguai e México). Na avaliação de Cristián Cox, o currículo foi metade do jogo para melhorar a qualidade da Educação. “A metade mais fácil porque do currículo dependem outras políticas, como mudar as competências da docência, o que exige uma articulação maior”.
Apesar da importância de uma reforma curricular, Cristián reconhece as dificuldades que uma mudança grande traz à comunidade docente. Entre elas, ele destaca três:
1) o equilíbrio entre o que é teoricamente desejável e o que é possível realizar 2) quebrar a resistência de mudar as práticas 3) alinhar as expectativas de resultado das mudanças.
“Um novo currículo é uma perturbação”, admite o líder da reforma educacional chilena. “Mudam o guia e os instrumentos do professor e é difícil sair da zona de conforto”. E completa: “Quando eu estava no ministério, depois de seis meses do novo currículo, a mídia já estava exigindo que os resultados das avaliações nacionais subissem. Mas não é assim. O esperado é que o currículo novo piore os resultados e, depois, os melhore”.
Em novembro de 2018, Cristián Cox esteve no Brasil para o evento “Redes que Transformam: Juntos para somar experiências e mudar a Educação no Brasil”, da Fundação Lemann, mantenedora da NOVA ESCOLA. Na ocasião, o educador chileno concedeu uma entrevista exclusiva à NOVA ESCOLA. Na conversa, ele compartilha erros e acertos da reforma curricular do Chile, fala sobre o funcionamento da avaliação que mede a qualidade do trabalho dos docentes e dá conselhos para uma boa implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Confira os principais trechos da entrevista:
A que o sr. atribui o sucesso do sistema educacional chileno? CRISTIÁN COX Acredito que o início do trajeto de melhoria da Educação Básica no Chile está relacionado com acordos transversais no sistema político sobre a importância estratégica da Educação. A área tem alta prioridade e isso se manifesta no orçamento. Nos últimos 25 anos, o Chile multiplicou em cerca de 12 vezes o que investe em Educação. É verdade que o orçamento era muito pequeno porque a ditadura não priorizou a Educação. Durante os anos 1980, o orçamento da área foi reduzido. A partir dos 90, isso mudou. Os acordos políticos transversais se traduzem em um aumento gradual e consistente de quanto se gasta com Educação. Nos últimos 10 anos, a curva é muito acentuada, com muito investimento.
As políticas intervêm em fatores diferentes – instituições, currículo, normas que regem a carreira docente e apoio à experiência de formação – e são melhoradas de forma coerente, garantindo que o conjunto do sistema educacional tenha bons resultados. O Chile também apresenta uma peculiaridade institucional que não existe em nenhum outro sistema na América Latina: cada escola chilena está sujeita a uma dupla prestação de contas. Isso acontece porque a atribuição do financiamento público é feito por aluno. Nesse cenário, há competição entre as escolas por matrículas, pela preferência das famílias. Além disso, há muita avaliação. O Chile avalia as aprendizagens de todos seus alunos em quatro disciplinas.
Crédito: Fundação Lemann/Produtora Maica
Existe competição entre as escolas públicas? Sim. O sistema [de dupla prestação de contas] foi estabelecido pela Ditadura nos anos 80. Apesar da sua ilegitimidade de origem [o golpe que terminou com a queda do presidente Salvador Allende], hoje em dia é parte do sistema educacional e é aceito. À essa prestação de contas se somam 25 anos de democracia e uma crescente regulamentação pública estatal, como a lei de inclusão e lei de subsídio preferencial, que é designada para alunos de setores mais vulneráveis. Então, há uma institucionalidade em que as diferentes peças operam de forma coerente.
Quais componentes curriculares são avaliados? História e Ciências Sociais, Ciência, Linguagem e Matemática. Além dessas avaliações, há o exame de aprendizagem do núcleo do currículo; a avaliação dos docentes; a avaliação do desempenho dos docentes a cada cinco anos e a avaliação das instituições. Essas instituições avaliam a equipe de gestão da escola, caso do proprietário se for uma escola privada, e o município, no caso das escolas públicas.
As regras fazem com que o sistema funcione rigidamente. O tamanho da conquista vai depender dos professores. A capacitação docente ainda permanece como uma das questões fundamentais, que está na topo da agenda. O demais está resolvido.
Como funciona a avaliação docente no Chile? O que acontece quando um professor não tem um bom desempenho? A avaliação docente é composta por quatro instrumentos: portfólio, avaliação de um par, do diretor escolar e uma autoavaliação. O elemento principal é o portfólio de evidências: 60% da avaliação depende do portfólio, que o professor tem dois meses para preparar. O portfólio inclui evidências da construção das aulas, um vídeo da realização das aulas e o feedback dos alunos. O vídeo da aula tem um papel muito importante nesse processo.
O Chile avalia seus professores de escolas públicas desde 2004. A partir de 2016, os professores de escolas privadas passaram a ser avaliados também. Quando o professor vai mal na avaliação, ele tem seu desempenho registrado como insatisfatório. No ano seguinte, esse professor recebe respaldo de um canal de apoio e capacitação. Depois de um ano, ele volta a ser avaliado. Se falhar de novo, o apoio será intensificado e ele será avaliado uma terceira vez. Se ele falhar novamente, aí terá de deixar o cargo.
Você foi um dos líderes da reforma curricular do Chile nos anos 1990. O Brasil está passando por um movimento semelhante, com a implantação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Olhando para trás, o que você vê que foi um grande acerto na reforma curricular chilena e o que você faria diferente, que poderia servir de aprendizado para o Brasil? O currículo é a coluna vertebral de um sistema escolar. Se há um sistema coerente, o currículo define como os professores são formados, o que é avaliado e os padrões. A definição do quê, do por quê e do para quê da Educação – as três perguntas são curriculares. Os conteúdos [do currículo] têm a ver com os requisitos da sua sociedade; eles formam para um tipo de vida, de economia, de democracia e de desenvolvimento da pessoa. É crucial que o currículo seja definido da forma mais representativa possível para que tenha legitimidade. O currículo é um ponto de identidade, um guia que define o norte da profissão docente.
Eu participei da direção da reforma curricular e 20 anos depois, parte desse marco curricular ainda está vigente. Mas o currículo tem sido modificado. Tivemos uma atualização em 2009 e outra em 2013, mas com continuidade. O que se desenhou e se estabeleceu nos anos 1990 foi robusto e coerente. Em termos gerais, a arquitetura ficou boa e o currículo foi valorizado.
Se eu fosse de novo líder dessa construção, faria as coisas de forma diferente. A maior parte do que não ficou bom foi resultado das definições de conteúdo das áreas do currículo. A equipe responsável tinha muito apego científico e lhe faltou imaginação sobre aquilo que as pessoas devem saber. Um exemplo: em Ciências, Biologia, Química e Física, com o olhar de hoje, muitas pessoas acreditam que o currículo ficou mal calibrado, muito exigente. No entanto, são problemas que são descobertos na implementação, ao comparar e recolher depoimentos de professores que estão trabalhando com o currículo. As atualizações têm levado isso em consideração e têm calibrado melhor os conteúdos.
Crédito: Fundação Lemann/Produtora Maica
Falando em legitimidade: os professores participaram da construção desse currículo? Os professores participaram sistematicamente na definição do currículo do Ensino Médio, mas não do currículo das outras etapas. A participação foi essencial para a implementação do currículo. A Argentina, por exemplo, passou pelo mesmo processo ao mesmo tempo: pós-ditadura, em um período democrático. Havia um bom diálogo entre as duas equipes e estávamos muito por dentro do que o outro estava fazendo. O meu par na Argentina era Cecília Braslavsky, uma grande educadora que faleceu em 2005.
Na ocasião, a Argentina definiu um currículo que era muito mais inovador do que o nosso. O currículo chileno era menos inovador porque quando ouvimos os professores durante o processo de construção, eles nos fizeram ver que não queriam essa inovação e, portanto, decidimos moderar na inovação. A consulta foi sistemática no Chile. O currículo desceu para os estabelecimentos e o documento ficou cinco meses nas escolas. Cada escola e cada departamento de área nos informou de volta por escrito: “falta isso”, “sobra aqui”, “isto é demais”.
A Argentina não fez isso e não pôde implementar seu currículo. Levaram 10 anos para chegar na fórmula mais próxima da prática. É muito difícil calibrar. O currículo sempre tem que estar acima do que são as práticas. Mas se estiver muito acima, está errado porque não é implementável e o professor vai esquecer, como se não existisse aquele currículo. Se está muito próximo do que o sistema educacional já trabalha, não promove mudança.
Como calibrar isso? Muito complicado. Não pode ser feito sem participação, tem que ter esse equilíbrio entre a ponta da liderança conectada internacionalmente – que vê como necessário esse nível de inovações – com a sua base docente e suas práticas. Desse diálogo, se bem organizado, sai um bom ponto de equilíbrio que é de mudança, mas uma mudança que sua base docente pode aspirar, acessar e abraçar. A Argentina fez mal essa calibragem, a do Chile ficou boa.
O Brasil está passando exatamente por essa discussão. Embora existam críticas ao currículo atual, há um apego ainda ao modelo existente. Ao longo do processo de construção da BNCC, conteúdos hoje trabalhados nas escolas foram retirados e, muitas vezes, mesmo tendo sido apontados por professores como conteúdos que deveriam permanecer. Outros conteúdos mais inovadores foram acrescentados, mas recebidos com um “isso não é possível ser feito”. Para além da calibragem inicial de lançamento de uma política curricular, o ideal é considerar na construção de um documento como esse que haverá revisões para determinar objetivos de aprendizagem mais complexos ou mais inovadores? No Brasil, há um mecanismo na legislação que define a revisão da BNCC a cada cinco anos. Cinco anos é muito pouco. É verdade que, hoje em dia, o que acontece na vida socioeconômica tem um ritmo de mudança muito rápido e cinco anos é muito tempo para, por exemplo, a tecnologia, que avança rápido. Mas a Educação é outra coisa. O professor não se apropria e executa bem o novo currículo em pouco tempo. Só a apropriação do novo currículo leva cinco anos. Depois de cinco anos vai dizer aos professores que vai mudar de novo?
Não é uma regra, mas se há inovação – e o que vocês têm agora [com a Base Nacional Comum Curricular] é uma grande inovação – é preciso levar isso a sério para seja apropriado pelos professores e entre de vez no DNA do sistema educacional. E isso leva tempo. No Chile, de 1998 até 2009 não se mudou nada.
Uma vez que a mudança está no DNA do sistema educacional, ela pode se ajustar – desde que não mude algo estrutural. O princípio do método para essa regulação é o equilíbrio entre ação e prática. Para isso, é crucial recolher e atuar, sistematicamente, com base em evidências levantadas junto com os professores. As equipes de elaboradores sempre estão mais próximas da academia do que quem tem de colocar o currículo em prática. A academia está em outro jogo, do conhecimento, da inovação. E ela é ultra crítica ao sistema escolar. Se você se apegar somente à academia, o risco de errar é altíssimo.
Pensando um pouco na aprendizagem dos alunos ao longo do período de transição entre currículos, como garantir que essa adaptação do modelo, da formação docente e materiais didáticos não cause grandes perdas de aprendizagem ou prejudiquem a formação de uma geração que viverá a transição? As mudanças nunca são tão drásticas como para que a figura do estrago apareça. No geral, os jovens adoram a mudança curricular. O mesmo não acontece com os professores porque são novos currículos e, em geral, tendem a ser mais contemporâneos ao tentar conectar o mais abstrato das disciplinas com projetos, aplicação e prática. O professor que está em sala há muitos anos fazendo daquela forma tem seus hábitos. Se a base docente é jovem, a resistência é menor. Eles tendem a se comprometer com um horizonte de mudança.
E como se pode usar esse engajamento dos professores jovens para impactar também os professores que estão há muito tempo em sala de aula e têm mais dificuldade em se apropriar de novos conceitos? A liderança da instituição tem a responsabilidade de formar de sua equipe. Se ela é sensível à composição de sua equipe – e se essa equipe é intergeracional –, a liderança tem que discutir essas diferenças e trabalhar as vantagens de um e outro. Os jovens são rápidos para se adaptar ao novo. Por outro lado, eles não possuem o conhecimento prático acumulado que os professores mais experientes têm a ensinar.
Mas é crucial que as instâncias de elaboração prestem atenção em como processar as pressões da mudança com um time que se relaciona com o novo em diferentes idades. Todo diretor vive isso diariamente, mas quem cria as políticas e os acadêmicos não querem saber desses detalhes. Se apenas os jovens abraçam o novo currículo, eles criam distância [com o resto da equipe], se dividem e não tem paz. Sem esse apoio mútuo, não há condições básicas para a mudança.
Se você tivesse que deixar um bom conselho para o Brasil em termos de construção de currículo, qual seria? O ideal é estabelecer um diálogo fértil entre a liderança nacional, tomando cuidado de que a conversa não seja capturada pela academia. Também é preciso observar com os olhos livres de ideologias e interesses. Se o que se definiu até o momento cuidou desses dois polos e seu equilíbrio, está tudo bem. Se não foi assim, ainda é possível repará-lo durante o caminho que vem por aí, na apropriação dos professores sobre as novidades e nos ajustes.
Esse é o lado mais inspirador da política. A política, no seu sentido mais profundo, é a liberdade que a sociedade tem de atuar sobre como está vivendo. Neste caso, é a liberdade de poder voltar no que não ficou bom. Mas o currículo é um documento. Fazer bem esse documento tem os desafios que já conversamos. Essa agenda é muito mais simples do que esta outra: as regras e a cultura de como selecionar, o formar e certificar os professores. Essa é a agenda do Chile no momento. Depois de uma reforma curricular, o foco deve ser: professores, professores, professores em formação inicial. É necessário fazer estas perguntas: como selecionar? Como preparar? Como certificar? Como avaliar? Acredito que o Brasil tem aí uma agenda imensa.