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Jornalismo

Tempo integral: o que muda a Educação não são as horas a mais na escola

Fazer com que os alunos passem mais tempo na escola não garante melhoria no aprendizado. O que faz a diferença é o quê e como eles têm oportunidade de aprender nesse período

PorLaís Semis

29/05/2019

A repórter viajou a convite do Instituto Natura e do Instituto Sonho Grande para conhecer as Escolas de Referência em Ensino Médio (EREM) da rede estadual de Pernambuco. Os institutos realizam apoio técnico e de pesquisa em parceria com a Secretaria Estadual de Educação de Pernambuco. Não há apoio financeiro envolvido. As escolas foram financiadas inicialmente pelo Governo do Estado e pelo Banco Mundial.

O engajamento dos alunos é uma das características das escolas de tempo integral em Pernambuco. Crédito: Danilo Giunchetti

“Meus pais sempre me disseram: se esse é o teu sonho, vai atrás”, conta Maria Fernanda da Silva Batista, recém-formada na rede estadual de Pernambuco. Os sonhos poderiam ser pequenos para os alunos de um estado que registra aproximadamente 1 milhão de pessoas em situação de pobreza e 13,4% da população analfabeta, como indica a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad/2015 e 2017, respectivamente). Mas os sonhos de Maria Fernanda foram ampliados por oportunidades que encontrou no Ensino Médio. “Sempre morei na zona rural de Orobó [agreste pernambucano]. Meus pais são agricultores. Até o 9º ano, estudei em uma escola rural bem próxima à minha casa. Todos os dias eu ia e retornava e convivia com pessoas que eram da minha localidade. Eu tinha uma visão apenas das pessoas que viviam lá”, diz. “Mas quando você sai de uma escola de ensino regular e entra em uma semi-integral ou integral, você vê oportunidades totalmente diferentes para sua vida”.

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Em 2018, aos 17 anos, ela concluiu a Educação Básica na Escola de Referência em Ensino Médio (EREM) Rita Maria da Conceição, uma instituição de tempo semi-integral. Nesses três anos, perdeu a conta dos projetos dos quais fez parte e reconhece as conquistas que a permitiram sonhar mais alto. Parte delas veio das relações pessoais. “Eu sou muito tímida.  Mas quando conheci todos os projetos que são proporcionados na escola… a minha vontade de me envolver neles superou minha timidez”, relembra. Hoje, ela é presidente do grêmio estudantil – algo que não imaginava acontecer em sua vida de estudante.

Maria Fernanda, 17 anos, foi uma das mil alunas selecionadas pelo programa de intercâmbio Ganhe o Mundo, do estado de Pernambuco. As aulas do curso de Língua Inglesa da EREM Rita Maria da Conceição, no contraturno, possibilitaram que a estudante desenvolvesse seu aprendizado na língua para poder concorrer ao programa. Crédito: Danilo Giunchetti

Além de aprofundar e ampliar relações, o maior tempo na escola também possibilitou que Maria Fernanda pudesse cursar Língua Inglesa no contraturno. O curso, que integra o Programa Ganhe o Mundo, permitiu que ela conquistasse uma das mil vagas para estudar um semestre no exterior com apoio do governo estadual, em 2017. “Foi uma experiência única. Eu acredito que vai servir pra mim tanto no mercado de trabalho, quanto na minha vida pessoal. De certa forma, até os seus sonhos voltam transformados do intercâmbio”, afirma ela, que fez sua primeira viagem internacional para estudar no Canadá.

Mais tempo na escola

Maria Fernanda é uma das 152 mil estudantes das 389 Escolas de Referência em Ensino Médio de Pernambuco. O estado é pioneiro na implementação de uma política estadual de tempo integral. Com a lei complementar estadual nº 125, de 10 de julho de 2008, foi possível garantir continuidade à política de Educação integral, independentemente de que governo estivesse no poder. Foi a continuidade que possibilitou que o início do ano letivo de 2019 dispusesse de 57% das vagas do Ensino Médio na rede pública do estado em escolas de tempo integral ou semi-integral.

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“Foi um planejamento desenhado em 2007 para dar uma virada nos resultados educacionais de Pernambuco”, explica Fred Amâncio, secretário estadual de Educação. Apoiado na política de Educação Integral, o estado viu a distorção idade-série cair de 57% (2010) para 27% (2016); a taxa de evasão foi de 24% (2007) para 1,7% (2016) e a taxa de aprovação subiu de 78,2% (2010) para 91% (2016).

O investimento na modalidade para a última etapa da Educação Básica vai na contramão do que o Brasil tem feito nos últimos anos. Quando se olha para as matrículas no país, o maior percentual de alunos em jornadas de tempo integral está na Educação Infantil (29%), enquanto o menor é o Ensino Médio (8,6%).

A ampliação da oferta da Educação Básica em Tempo Integral é uma das metas previstas no Plano Nacional de Educação (PNE). Até 2024, a meta prevê que pelo menos 50% das escolas públicas oferte o modelo e atenda, no mínimo, 25% dos alunos da Educação Básica. De acordo com o segundo Relatório de Monitoramento das Metas do PNE, publicado em 2018 pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), esses números ainda estão longe de se tornar realidade. Em 2017, 17,4% dos alunos brasileiros estudavam em jornadas integrais e apenas 28,6% das escolas ofertavam o tempo integral. Nesse cenário, os números de Pernambuco se destacam frente inclusive a estados mais ricos na federação.

As experiências práticas e em grupos fazem parte do dia a dia das EREMs. Crédito: Danilo Giunchetti

“Não só pela experiência, mas por vários estudos, é possível afirmar que o modelo dá mais resultado que a escola regular”, afirma David Saad, diretor-presidente do Instituto Natura, que trabalha com suporte técnico para programas de Educação em tempo integral. O segredo dos resultados, entretanto, não está nas horas a mais que o aluno passa na escola. “Ter mais escolas de tempo integral por si só não significa mais qualidade de aprendizagem”. O que a ampliação do tempo pedagógico permite é que faz a diferença. “Estamos diante de um modelo pedagógico diferenciado, que utiliza o tempo como uma estratégia conectada ao currículo e visando levar uma Educação Integral ao aluno”, explica David.

Os números – do sucesso de Pernambuco e dos dados educacionais negativos no Brasil – também apontam um “problema” que o modelo de tempo integral tem atacado: a necessidade de escolas que dialoguem mais com os adolescentes. Um estudo do movimento Todos pela Educação, com base na Pnad, mostrou que 36,5% brasileiros de 19 anos não concluíram o Ensino Médio em 2018. O número representa quase quatro em cada 10 adolescentes nessa faixa etária. Enquanto isso, 1,7% dos alunos de 9º anos declararam nos questionários da Prova Brasil que pretendem só trabalhar no Ensino Médio.

“Todos os nossos projetos na escola de tempo integral dialogam com a visão de tornar a escola mais atrativa para os estudantes”, explica Fred Amâncio, secretário estadual de Pernambuco. A consequência é o maior engajamento dos alunos e, consequentemente, melhores resultados em notas e taxas de conclusão da Educação Básica. Os projetos, clubes e disciplinas eletivas dão aos estudantes oportunidades de explorar áreas do conhecimento sob diferentes perspectivas – as aulas tradicionais de Matemática e Física, por exemplo, podem ser ampliadas pelo modelo e permitir que os alunos possam desenvolver novos aprendizados e aplicar conhecimentos na prática em clubes de programação ou aulas de robótica. Há também projetos mais voltados para o empreendedorismo, Arte, História, línguas… “Cada escola tem o seu projeto, mas todas elas seguem uma linha de permitir que o estudante tenha experiências diversas em seu processo de aprendizagem para desenvolver o seu protagonismo e construir seu projeto de vida”, diz Fred.

Projeto de vida

As ações da escola orbitam em torno do projeto de vida dos estudantes. Nesse contexto, eles são convidados a pensar não só sobre o presente, mas também como essas ações podem ajudar na construção dos planos futuros. “Esse jovem começa a pensar não só na grade curricular, mas também no projeto de vida como uma projeção do que pode fazer”, explica Igor Lima, diretor-presidente do Instituto Sonho Grande. O projeto vai sendo refinado ao longo do Ensino Médio. “A escola vira um mobilizador do projeto de vida do aluno e isso se conecta aos desejos dele e faz acreditar que ele pode chegar aonde quiser”, explica David, diretor do Instituto Natura. “A centralidade do projeto de vida nesse modelo pedagógico é o que dá essa atratividade, ao mesmo tempo em que faz o jovem acreditar que pode chegar lá”. Para receber apoio no desenvolvimento desse projeto, as EREMs trabalham com tutoria – em que um funcionário da escola se coloca como parceiro experiente para ser a referência do aluno.

Protagonismo

Outro pilar do modelo desenvolvido em Pernambuco é o protagonismo. A escolha das eletivas é uma das ações de destaque, mas o importante é que os estudantes se envolvem nessa construção. Os professores se reúnem para construir suas propostas, que são apresentadas e escolhidas pelos alunos. De acordo com o secretário, uma escola de 12 salas precisa ter entre duas e quatro eletivas, que precisam ser aprovadas pela secretaria. Além disso, a escola pode oferecer um curso de língua estrangeira ou criar clubes, que podem cobrir áreas de atuação variadas, como programação, astronomia ou leitura.

Na Escola de Referência em Ensino Médio Santa Ana um grupo de alunos construiu uma empresa que fabrica vasos e os vende. Os professores foram os investidores iniciais da empresa: contribuíram com R$10,00 e, depois de algum tempo, receberam de volta o dobro do investimento inicial. Crédito: Danilo Giunchetti

O processo de escolha vai se tornando qualitativo no decorrer do Ensino Médio. As escolhas passam a considerar não só o que parece mais legal, mas também o que interessa ao estudante, que tipos de projetos gostaria de tomar parte e quais habilidades considera relevante desenvolver em sua vida.

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Para Igor Lima, o que faz a diferença no modelo do Ensino Médio Integral é a possibilidade de olhar para a formação integral dos jovens – que é construída a partir de ações como protagonismo e projeto de vida. “Precisamos de uma escola capaz de engajar o jovem, que o faça ter vontade de participar das atividades e que ele acredite que vai fazer a diferença na sua vida”, diz. A dedicação exclusiva dos professores nas escolas de tempo integral também colabora para a aprendizagem. “Faz com que o professor fique mais próximo do jovem e o conheça melhor. São fatores que acabam fazendo uma diferença relevante em níveis de proficiência e fluxo, além das mudanças na vida desse jovem que vamos ver no futuro e que estamos começando a medir”, aponta Igor.

Uma dessas medições está sendo realizada pelo Instituto Sonho Grande e pelo Laboratório de Pesquisa e Avaliação em Aprendizagem da Fundação Getúlio Vargas (LEARN/FGV), em parceria com a Secretaria de Educação de Pernambuco. A análise inicial foi feita a partir de entrevistas com  2.814 jovens formados em escolas regulares e de tempo integral na rede estadual entre os anos de 2009 e 2014. Por ora, três conclusões principais podem ser tiradas do levantamento:

- Os jovens formados nas escolas de tempo integral estão chegando mais ao Ensino Superior. Enquanto estes têm 63% de chance de ingressar em um curso superior, os alunos de escolas regulares têm 46% de chance;

 A Escola de Referência em Ensino Médio de Paulista conta com um clube de programação. O professor que lidera o grupo é ex-aluno da instituição. Crédito: Danilo Giunchetti

- A remuneração inicial dos alunos formados em EREMs é 18% superior à dos formados em escolas de tempo parcial. Essa diferença de remuneração é de cerca de R$ 265,00. Ainda que se considere aqueles que tenham apenas o Ensino Médio completo, os formandos das escolas integrais também recebem salários melhores (cerca de R$ 143,00 a mais). A análise sugere que mesmo tendo a mesma qualificação, os formados em escolas de tempo integral estão tendo melhor desempenho no mercado de trabalho, o que pode estar associado ao desenvolvimento de competências socioemocionais e outras habilidades estimuladas pelo protagonismo e projeto de vida.

- A escola de tempo integral produz maior equidade salarial entre brancos e negros. Enquanto nas escolas parciais, os negros recebem cerca de 10% a menos do que os brancos, nas escolas de tempo integral, essa diferença não existe. O dado sugere que as escolas dessa modalidade têm um impacto positivo na promoção da equidade racial e no empoderamento dos jovens negros no mercado de trabalho.

Para o secretário Fred Amâncio, apesar dos motivos para comemorar, ainda há muito trabalho a ser feito nas escolas de Ensino Médio de Pernambuco. “É uma estratégia poderosa que influenciou e inspirou o trabalho de outros estados”, admite. “No entanto, nenhuma estratégia ou projeto é tão bom que não precise ser aprimorado”. Para dar saltos mais altos, Pernambuco quer fortalecer o trabalho de Educação Integral nas redes municipais, compartilhando seus aprendizados e apoiando o desenvolvimento de ações nas secretarias municipais. “Chegou a hora de olhar para a Educação do Estado como um todo, o que só vamos conseguir trabalhando em colaboração com os municípios no Ensino Fundamental”, diz.

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