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Jornalismo

Como a ditadura entra na sala de aula: a história contada pelos livros didáticos

Para chegar aos professores e alunos da rede pública, os livros precisam atender às exigências que constam no edital do MEC

PorFabiana Maranhão

29/04/2019

Crédito: Arquivo Nacional

Os atuais livros didáticos de História que integram o PNLD (Programa Nacional do Livro Didático) e que são distribuídos para as escolas públicas de todo o país oscilam entre duas narrativas sobre a ditadura no Brasil, que cobriu o período entre 1964 e 1985: uma retrata esse momento histórico como uma ditadura essencialmente militar e outra defende que vivemos uma ditadura civil-militar, na qual houve participação de militares e também de parte da sociedade civil.

Essa divergência presente nos livros didáticos de história da atualidade é um fenômeno recente em relação a esse momento histórico. Nas obras usadas em sala de aula entre a década de 1990 e o começo dos anos 2010, a versão que predominava era diferente: a ditadura teria sido de responsabilidade única dos militares. Já durante o regime militar, entre as décadas de 1960 e 1980, os livros didáticos se referiam ao golpe ocorrido em 64 e ao período ditatorial como revolução.

“Durante a ditadura, os livros didáticos seguiram a linha de adesão, com raras divergências”, explica a professora Helenice Aparecida Bastos Rocha, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Há mais de dez anos ela estuda livros didáticos de história. “Após a ditadura, houve a busca da constituição de uma nova narrativa e depois dos anos 2010 os livros passam a estar mais próximos das divergências historiográficas sobre a ditadura militar, que se tornou bastante vigorosa ao final dessa primeira década do século 21”.

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A diferença é grande para um intervalo de tempo relativamente curto para a história do país, mas os pesquisadores afirmam que essas mudanças são normais. A história não é algo estático: ela vai mudando e se consolidando com o passar do tempo. Isso explica porque um fato histórico é contado de uma forma e, anos depois, é retratado de outra maneira. A dúvida que fica é: quem determina como a história é mostrada nos livros que orientam professores e alunos da rede pública de ensino no estudo dessa disciplina? 

Quem manda na história

A cada ano, as mais de 140 mil escolas públicas de todo o país (segundo o Censo Escolar 2018) escolhem que obras serão usadas em sala de aula, nos ensinos Infantil, Fundamental e Médio, em uma espécie de “cardápio” de livros elaborado pelo Ministério da Educação (MEC). É o chamado Guia Digital do PNLD. Para que os livros didáticos integrem esse “menu escolar”, editoras precisam inscrever suas obras após a publicação de um edital.

“Os materiais distribuídos pelo MEC às escolas públicas de Educação Básica do país são escolhidos pelas escolas, desde que inscritos no PNLD e aprovados em avaliações pedagógicas coordenadas pelo Ministério da Educação e que conta com a participação de comissão técnica específica, integrada por especialistas das diferentes áreas do conhecimento correlatas”, diz texto do site do MEC.

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Para chegar aos professores e alunos da rede pública, os livros precisam atender às exigências que constam no edital do MEC. Ou seja, é o governo que determina o que deve estar no livro didático. “O livro que chega na mão do professor é regulado por um edital que é publicado dois anos antes. A mudança que tem no livro didático é indicada pelo edital”, afirma a pesquisadora Helenice Rocha.

No caso dos livros de História, cada governo pode definir o que entra ou não nas obras, que versões dos fatos históricos estarão presentes nos livros? Não é bem assim. No começo de abril, o ex-ministro da Educação Ricardo Vélez Rodríguez falou em revisar a forma como os livros didáticos retratam o golpe e a ditadura militar. Para ele, não houve ditadura, mas um "regime democrático de força".

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“Quando um ministro indica que vai precisar ser feita uma revisão, essa revisão tem que se sustentar em um edital, e esse edital vai ter que fazer uma indicação pedagógica dessa necessidade. Não pode ser simplesmente ‘o ministro resolveu que vai ser assim’ porque senão nem mesmo a equipe pedagógica que vai realizar o trabalho vai conseguir sustentar a decisão do MEC”, esclarece Helenice. A pesquisadora diz que uma das exigências feitas pelos editais do PNLD é que os livros didáticos “precisam estar atualizados com a historiografia”, que são os estudos sobre a história. Ou seja, as obras devem usar como referência o que tem sido pesquisado nas universidades, e isso independe de governo. Outro requisito determinado pelos editais é que as obras também estejam atualizadas em relação aos acontecimentos presentes.  

“A cada PNLD, a cada edital que sai, há mudanças significativas. A implantação curricular nas escolas muitas vezes se apoia nos livros didáticos. Então tem uma política do governo que sempre procura adequar as mudanças que ele espera no currículo e no cotidiano da escola a partir de mudanças feitas nos livros didáticos”, explica Cândido Grangeiro, autor de livros didáticos de história há quase 20 anos e atual presidente da Abrale (Associação Brasileira de Autores de Livros Educativos).

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O autor destaca, no entanto, que “essas mudanças sempre passaram por um terreno muito seguro”. “Sempre foram fundamentadas na legislação, no conhecimento existente. [As mudanças] nunca vieram de uma maneira que representasse insegurança ou imposições de conteúdo”, afirma. “Uma BNCC, por exemplo, direciona aquilo que você deve ou não deve tratar, não impõe um conteúdo, não te coloca uma insegurança se seu trabalho vai ser aceito, não vai ser aceito, se vai passar por censura ou não vai passar por censura”. 

Mudanças na história

Para que mudanças sejam feitas nos livros didáticos de história distribuídos às escolas públicas, é preciso que elas sejam pedidas no edital do PNLD, que encontrem respaldo na historiografia e que estejam de acordo com os acontecimentos mais recentes.

A professora da UERJ Helenice Rocha cita como exemplo de mudança recente a forma como as obras têm tratado o assunto da nova ordem mundial, que costuma ser um dos últimos temas a serem estudados pelos alunos. “O tema [da nova ordem mundial] surge no início da primeira década do século 21, numa perspectiva bastante econômica. No PNLD 2011, os autores tentam ampliar o tema, ainda com bastante força no tema econômico, mas fazendo outras considerações. Já em 2017, todos [os autores] estavam convergindo um pouco para uma avaliação ponderada sobre aquilo que nenhum deles estava mais chamando de nova ordem mundial. Inclusive, em alguns livros, não era mais o último capítulo. Eles [os autores] estavam tentando fazer uma ponderação como último capítulo da questão ambiental, do aquecimento global etc.”    

Segundo a pesquisadora, não é sempre que os livros didáticos de história são revistos. “Pelo contrário, normalmente eles são muito pouco revistos. São revistos em pontos-chave em que houve um grande avanço do conhecimento ou em que houve uma mudança muito drástica, como por exemplo quando acabou a União Soviética”. Ela critica o fato de as obras didáticas ainda não terem atendido solicitação do próprio edital do PNLD de rever o tema do eurocentrismo, que é “a tendência a narrar toda a história mundial sempre com o eixo partindo da Europa, com a lógica europeia, do homem branco, europeu”.

“A entrada da história da África, exigida pelo PNLD, foi uma forma de mexer com as coisas. As editoras fizeram entrar a história da África, mas pouco mexeram no eurocentrismo existente na história mundial”, afirma Helenice. “A narrativa que está nos livros não constrói um outro lugar ainda. As editoras e os autores mantêm a narrativa tal como já estava estabelecida há décadas”. 

Como é feito um livro didático de História

Elaborar um livro didático de história, assim como de qualquer outra disciplina, não é tarefa simples. Imagine ter de resumir séculos de conhecimentos e traduzi-los para uma linguagem acessível para professores, crianças e adolescentes.

“Os autores de livros didáticos são guerreiros. Eles têm uma tarefa enorme de produzir uma coleção de quatro volumes, de 300 páginas, com texto, imagem, exercício. É um trabalho hercúleo. Fazer um livro didático é um empreendimento muito grande. É um processo de produção muito trabalhoso”, avalia Helenice Rocha.

Em sua primeira experiência de produção de um livro didático, a professora de história da UERJ Daniela Calainho passou dois anos para elaborar, juntamente com colegas, um material para a rede pública e privada de ensino. “Nós utilizamos os trabalhos acadêmicos de ponta, artigos de especialistas e também documentos de época, claro que tudo devidamente adaptado ao Fundamental. Trabalhamos ainda com muitas imagens e mapas, num movimento de sempre diversificar os materiais didáticos”, detalha. Quando se trata de acontecimentos mais recentes, os autores também usam como fonte a imprensa.

Cândido Grangeiro afirma que os livros didáticos usados atualmente nas escolas públicas têm uma qualidade muito melhor em comparação ao material de décadas passadas. “Antes dos anos 90, havia vários programas de governo [para compra de livro didático]. Nos anos 90, começa o PNLD, que é um programa centralizado, e a compra é toda centralizada. Quando começa esse programa, começa a ter avaliação do livro didático. É significativa a mudança. O erro reprova, os equívocos de abordagem didática reprovam. Então você passa a ter um cuidado muito maior na produção do livro didático”.

O autor destaca, no entanto, que apesar de ser de boa qualidade, o livro didático não deve ser o único material a ser utilizado pelo professor em sala de aula. “A minha expectativa é que ele [o livro] seja um dos muitos instrumentos na mão do professor para ele dar a aula que deseja, na estratégia que ele planeja. O livro só ganha vida na mão desse professor. Quanto melhor formado esse professor, ele vai poder fazer 300 mil conexões e relações com vários materiais”, sugere.

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