Carla Cristina Garcia: "A escola é o espaço para discutir sobre feminismo"
Para pesquisadora, redes sociais e novas gerações deram visibilidade a reivindicações antigas na luta pela igualdade entre homens e mulheres
12/03/2019
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Jornalismo
12/03/2019
#MeuPrimeiroAssédio, #ChegaDeFiuFiu, #MeToo e #NemUmaAMenos: nos últimos anos, o feminismo e suas reivindicações viraram, literalmente, hashtags nas redes sociais, impactando milhares de pessoas. Para a autora de Breve História do Feminismo (Editora Claridade) e professora da PUC-SP, Carla Cristina Garcia, o século 21 deu visibilidade inédita e um rosto novo para reivindicações antigas, como o assédio e a violência contra a mulher. Garcia defende que a discussão esteja na formação dos professores, nos materiais didáticos e também nas aulas, de forma interdisciplinar. “Somos professores para formar cidadãos. Na aula de Matemática, ao falar de Pitágoras, precisamos lembrar de Hipátia de Alexandria e outras, para que os alunos saibam que as mulheres estavam lá”, defende.
NOVA ESCOLA: A discussão sobre o feminismo cresceu nos últimos anos entre as brasileiras, movida principalmente pelas redes sociais. Como se diz, o feminismo virou hashtag. O que explica essa ascensão?
CARLA CRISTINA GARCIA: Há o renascimento de um tipo de manifestação do feminismo dos anos 1970 nos Estados Unidos, que são as grandes marchas que vão tomando o mundo branco urbano ocidental. Não dá para negar a importância da rede social nisso.
Muitas organizações políticas jovens feministas começaram a ter visibilidade maior e, por conta disso, algumas pautas do feminismo alcançaram uma visibilidade inédita, como é a
questão do assédio nas ruas mostrado pela campanha de 2013 Chega de Fiu-Fiu (organizada pelo projeto Think Olga) e, inegavelmente, o movimento #MeToo (campanha que se multiplicou entre as atrizes de Hollywood contra a cultura de assédio sexual no principal cenário do cinema mundial) e o Ni Una Menos (Nem Uma a Menos, campanha contra o feminicídio que nasceu na Argentina). Esse tipo de hashgtag colocou uma luz em fenômenos muito antigos que tiveram alcance midiático graças às redes sociais. Temos um fenômeno de mídia importante, que leva velhas pautas para o topo da lista.
NE Qual é o papel das redes sociais nesse cenário?
CCG A primeira função foi, sim, divulgar mais o que as feministas fazem. A outra foi essa cara que as jovens feministas vão imprimindo a velhos temas, como o assédio. Por outro lado, do mesmo modo que se fazia com as sufragistas na imprensa do início do século 20,
há uma divulgação sobre o que é ser feminista que vai na mesma linha. Isso acaba repercutindo em um entendimento equivocado do feminismo, principalmente entre
pessoas que não se interessam profundamente por saber o que as feministas têm proposto
nos últimos 300 anos.
NE E que propostas são essas?
CCG O feminismo, que nasceu no Ocidente como um filho bastardo da Revolução Francesa (1789-1799), pede que as mulheres possam ter os mesmos direitos civis que os homens: votar, ser eleita, trabalhar sem que um homem precise autorizar ou ser proprietária de sua casa. Infelizmente, nos últimos 300 anos as pautas vêm aumentando, e não diminuindo. Ainda lutamos por salário digno e não temos representação política suficiente para levar a cabo as reivindicações específicas das mulheres. Portanto, feminista é aquela que luta política e organizadamente para que as mulheres tenham os mesmos direitos civis que os homens. Não tem nada a ver com ódio ao homem ou vê-los como inimigos.
NE Quais as principais contribuições das mulheres negras para o feminismo?
CCG Para o feminismo ocidental, foi colocar a raça e a classe na discussão e mostrar que as mulheres não são todas iguais.
NE No Brasil, é possível analisar as mulheres sem olhar para a questão racial?
CCG É impossível não levar em consideração a raça, a classe e o gênero. A condição da mulher negra é muito diferente da condição da mulher branca. E da mulher negra pobre é diferente da mulher negra rica.
NE Hoje encontramos coletivos feministas de estudantes no Fundamental. Que novidades essa adesão das adolescentes traz para o movimento?
CCG Temos as adolescentes exatamente porque são elas que sabem lidar com as ferramentas digitais. Isso acaba entrando no cotidiano na forma dos coletivos nas escolas, por exemplo. Espero que esta geração, na medida em que vá envelhecendo, consiga sofrer menos abusos do que as mulheres mais velhas.
NE A escola é um espaço adequado para discutir feminismo?
CCG A escola é o espaço para discutir, justamente porque é lá que formamos os cidadãos. Somos educadores para formar cidadãos e cidadãs. Como professora universitária, tenho tentado nos últimos 25 anos tratar dessas questões a cada aula. Na hora de colocar na lousa nomes de autores, escrevo de homens e de mulheres. Na aula de Matemática, ao falar de Pitágoras, precisamos lembrar de Hipátia de Alexandria e outras para que os alunos saibam que as mulheres estavam lá. Essa discussão precisa ser colocada nos materiais e trabalhada interdisciplinarmente, mas de nada vai adiantar sem a formação. Mesmo com o melhor material do mundo, sem entender a importância daquilo para a minha aula eu não toco no assunto.
NE Por que não há muitos exemplos de mulheres na História ensinados na escola?
CCG A ideia de conhecimento que temos é um modelo universal, masculino e cartesiano. Do mesmo modo que não aprendo sobre representantes femininas na Ciência, também não tenho exemplos de pessoas negras. Isso porque o mundo é centrado na produção do homem branco europeu. Assim, pelo menos na escola formal, acabamos quase sem referências às conquistas científicas ou culturais de outros grupos.
NE Qual seria o impacto de uma educação mais igualitária?
CCG O resultado é uma menina que sabe que ela pode ser tudo o que quiser e que pode ir aonde quiser sem medo de morrer, de ser xingada ou de sofrer violência.
NE “Ideologia de gênero” é um termo que aparece nas críticas ao feminismo. O que é isso?
CCG É um nome que o pensamento conservador inventou para abarcar qualquer discussão
que se faça sobre as diferenças nas identidades sexuais, nas orientações sexuais etc. Mas o conceito não existe. Há uma campanha iniciada pelo Vaticano em 1975, quando a ONU torna aquele o ano internacional da luta pelos direitos das mulheres. Essa ideia toma força com o tempo, mas não existe. O que existe é o conceito de gênero, que o feminismo toma da psicologia social nos anos 1970 para falar sobre as relações de desigualdade e subordinação entre homens e mulheres, nas quais os lugares do homem e da mulher são uma construção social. No caso ocidental, uma construção social hierarquizada, que coloca a mulher num lugar subalterno com relação aos homens. É importante, quando alguém perguntar, dizer que não existe e contar a história dos feminismos.
NE Esse fluxo e refluxo é comum na história do feminismo?
CCG Sempre há avanços e, na mesma medida, as ofensivas. É o que Susan Faludi (jornalista americana) chamou de backlash: a ofensiva do patriarcado cada vez que os movimentos das mulheres avançam. Agora, vivemos o backlash do século 21.
NE Já temos pistas de como as mulheres responderão?
CCG Já há exemplos de algumas tentativas. Na Argentina, o movimento dos lenços verdes (campanha pela opção de aborto legal até a 14ª semana de gravidez ocorrida em 2017) teve uma repercussão incrível. Houve também o corredor de 600 quilômetros que as indianas fizeram em apoio a duas mulheres que entraram em um templo onde eram proibidas. No Brasil, houve o movimento #EleNão. Começamos a mostrar que não ficaremos paradas esperando perder as conquistas dos últimos 300 anos.
FEMINISMO EM ONDAS
Primeira Onda
Século 19 - 1920
As sufragistas buscavam a igualdade política pelo direito ao voto, que não veio ao mesmo tempo para todas. No Brasil, por exemplo, elas só puderam votar a partir de 1932.
Segunda Onda
1960-1980
Marcada pelo surgimento do anticoncepcional, essa geração buscou a igualdade no mercado de trabalho e na família, além de pedir direitos sexuais e reprodutivos.
Terceira Onda
1990s - ?
Atravessada por múltiplas reivindicações, traz a intersecionalidade (considerar a soma de fatores como raça e classe) nas análises. Para alguns autores, a terceira onda existe ainda hoje, agora levada para os meios digitais.
Fotos: Christian Braga/NOVA ESCOLA
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