Como a neurociência pode auxiliar em sala de aula
As pesquisas avançaram muito no conhecimento sobre como o cérebro lê, escreve e mantém a atenção e a memória. E essas descobertas têm potencial para alavancar o ensino
PorMônica Manir
11/03/2019
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Jornalismo
PorMônica Manir
11/03/2019
“Os homens deveriam saber que de nada além do cérebro vêm as alegrias, os prazeres, o riso e os esportes, e tristezas, pesares, desânimo e lamentações. Com isso, de maneira especial, adquirimos sabedoria e conhecimento, vemos e ouvimos, sabemos o que é imundo e o que é belo, o que é doce e o que é insosso.”
Quatrocentos anos antes de Cristo, Hipócrates já jurava devoção ao cérebro, num tempo em que o coração, o fígado, o útero e até o estômago disputavam o poder de dirigir as emoções e o raciocínio do ser humano. Passados mais de 2 mil anos, não se tem dúvida de quem está no controle. A ciência, mais especificamente a neurociência, tem demonstrado por A mais B que pouco somos sem aquele quilo e meio de massa rugosa passível de segurar na palma da mão.
A neurociência, por sua vez, é palavra recente para um estudo que começou no século 19, já com perfil interdisciplinar. Ela aglutina colaborações da medicina, da matemática, da química, da engenharia, da psicologia, da filosofia, das artes, da computação, da linguística.
Por tabela, tem oferecido contribuições para essas mesmas áreas, mas também para outras frentes, como a educação. “A neurociência deve ir para a sala de aula”, afirma cotidianamente o francês Stanislas Dehaene, matemático de formação e cultuado neurocientista.
Aos 53 anos, além de professor do Collège de France, Dehaene pilota a Unidade de Neuroimagem Cognitiva do Instituto Nacional de Pesquisa Médica e de Saúde (Inserm), única instituição pública francesa totalmente dedicada à pesquisa médica, biológica e de saúde pública.
A equipe desse pesquisador francês dedica-se a escanear o cérebro a fim de provar o que muitos já intuem: a atividade cerebral não existe sem uma impregnação poderosa do ambiente. A cultura é determinante no desenvolvimento do cérebro e essencial, por exemplo, na alfabetização. “Ler e escrever são aprendizagens culturais”, confirma Elvira Souza Lima.
Elvira é pesquisadora em desenvolvimento humano com especialização em neurociência, psicologia, antropologia e música. Está justamente na França, preparando um livro sobre o projeto Escrita para Todos, que aplica a neurociência na docência e na aprendizagem.
O projeto foi utilizado em escolas e redes de ensino de Juiz de Fora, Guarani, Pedro Leopoldo, Ipatinga e Ubá, em Minas Gerais, e também em Franca e, atualmente, em Barueri, no estado de São Paulo. Também deu resultado em situações de defasagem de aprendizagem como as encontradas no Ensino Médio da cidade de Bezerros, no Agreste pernambucano.
Uma das propostas de Elvira, a partir desse projeto, é incluir no currículo a Educação da Atenção. Segundo a neurocientista, a música e outras artes seriam os melhores recursos, já que nosso cérebro se transforma com a prática continuada de música, desenho, dança, escultura. Musicista, ela incorporou a prática artística no Escrita para Todos.
“Existe uma concepção no dia a dia escolar de que a atenção é linear e de que o estado de atenção é absoluto”, diz ela. No entanto, o aluno pode estar aparentemente focado na lousa, mas conectado na interação de dois colegas - ou, em contrapartida, com o rosto virado para a janela, porém divagando sobre coisas totalmente pertinentes à aula.
Junte-se ao cenário a concepção de que aluno disperso é “aluno problema” e lá vêm sanções, como “perder ponto na nota”, “prova surpresa” e “trabalho extra em casa” para tentar controlar essa atenção.
“Uma ameaça pode ter efeito contrário porque ela normalmente leva a uma difusão de movimentos e trocas químicas no cérebro nada favoráveis à aprendizagem”, afirma. O ideal, na percepção da neurocientista, seria educar a atenção dos alunos a partir de ações planejadas na direção de cativá-los, e não puni-los.
Adriessa Santos, coordenadora pedagógica do Instituto Singularidades, em São Paulo, segue linha semelhante, lembrando que a escola se tornou uma vilã para os estudantes por muitas vezes se concentrar na avaliação, nos erros e na punição. Ela lembra que existem diferentes tipos de atenção e destaca a sustentada, que requer intenção do indivíduo em se concentrar, algo não inato. “Isso pede esforço, e esse esforço tem de parecer compensador”, afirma.
As especialistas também lembram o papel importante da emoção no aprendizado. “A emoção está no início do processo de decisão e é determinante na atenção”, diz Elvira. Ela afirma que estudos recentes sobre o funcionamento cerebral mostram que emoções vividas em experiências passadas influenciam mais na tomada de decisão do que o raciocínio sobre a situação de momento. A experiência da emoção viria antes da consciência da ação.
Nesse sentido vale lembrar que, embora pareça que o professor estipula o que vai ensinar e o que não vai ensinar, o aluno é quem decide se quer ou não aprender. Se a turma parece desmotivada, o professor precisa rapidamente acionar estratégias para conquistar aqueles neurônios, redimensionando a atividade, mudando a pergunta, negociando com os estudantes.
“Nós estaremos onde o nosso sistema emocional estiver, portanto estratégias curriculares com fatos que propiciem emoção devem ser pensadas para a sala de aula”, atesta Adriessa.
O que já foi mapeado com mais segurança são alguns circuitos cerebrais especializados no processamento da leitura e da escrita (veja os detalhes no quadro abaixo). Várias áreas estão envolvidas, entre elas centros de linguagem no hemisfério esquerdo, como a área de Broca (expressão) e a de Wernicke (compreensão), e áreas que processam a música, no lado direito.
“Uma criança adquire a língua nativa de maneira natural, pela mera exposição ao ambiente, mas o mesmo não ocorre com a leitura e a escrita”, diz Adriessa. Elas precisam ser ensinadas.
A neurociência pende para o método fônico, que se baseia na relação entre a letra e o som correspondente. É por esse caminho que vai Stanislas Dehaene. Ele explica que no português, por exemplo, a criança absorve primeiro a combinação de consoantes e vogais. Em seguida, entende a combinação entre duas consoantes e uma vogal, como o “bro” de cérebro.
Essa composição do menor para o maior é realizada no hemisfério esquerdo do órgão. Quando a formação por meio do aprendizado se baseia primeiro na identificação da palavra inteira, como propõe a teoria construtivista, ativa-se o lado direito do cérebro, mas a decodificação dos símbolos tem de migrar para o lado esquerdo para que seja concluída. Haveria certo atraso, enquanto o fônico permitiria uma relação mais imediata entre letras e sons.
Carla Tieppo, coordenadora da pós-graduação em Neurociência na Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, contemporiza: “Existe verdade em todos os métodos, o mais importante é o agente da alfabetização”, diz, enfatizando que, se o professor fizer uso de um método em que acredita, ele vai funcionar.
Consenso é que a criança precisa praticar tanto a leitura quanto a escrita para reservar a vaga que ambas conquistaram no cérebro. Como meio plástico e pragmático, ele logo coloca outra função no lugar se perceber que a vaga está ociosa.
Por isso, a neurociência propõe estimular a criança com leituras diárias, para automatizar o processo e facilitar a interpretação de texto, e escritas cotidianas, para robustecer a memória da criança, ajudá-la a dialogar consigo mesma e com outras pessoas e estimulá-la a tomar decisões constantemente.
Afinal, na escrita ela precisa escolher as palavras e alinhavá-las bem para que faça sentido o que deseja transmitir. Copiar e colar subestima toda a capacidade do cérebro de estruturar o pensamento dentro de uma convenção (a escrita) e ainda criar textos claros e criativos.
O cérebro também tem estruturas especializadas no processamento lógico-matemático, mas não abriga um quartel-general só para isso, como na linguagem. “A matemática é uma matéria complexa que engloba diversas habilidades cognitivas, como numeração, medição, cálculo, geometria, álgebra, estatística”, afirma o linguista Fabio Theoto Rocha, de São Paulo.
Ele acaba de finalizar um estágio pós-doutoral no Centre for Neuroscience in Education na Universidade de Cambridge, onde criou um programa de atividades musicais visando desenvolver o processamento fonológico de crianças no período de alfabetização e sua habilidade de leitura e escrita.
Rocha explica que na numeração, por exemplo, dois processos podem ser observados, o da quantificação e o da ordenação. Inicialmente, neurônios da região frontal controlam o movimento dos olhos para localizarmos e focarmos os objetos de interesse que desejamos enumerar ou contar.
Esse controle ocorre em conjunto com neurônios das regiões occipital e temporal, que decodificam as imagens e reconhecem os objetos que visualizamos, e com neurônios da região parietal, que processam a informação visual referente ao espaço em que os objetos se encontram.
A partir do reconhecimento de um objeto de interesse, neurônios da região frontal efetuam a ordenação de cada objeto, enquanto neurônios da região parietal acumulam a quantidade de objetos identificados – um ziguezague de movimento cerebral que parece labiríntico.
Rocha ajudou a formular um material didático chamado Synapse, que é usado no Instituto de Pesquisas em Tecnologia e Inovação (IPTI), em Santa Luzia do Itanhy, em Sergipe, com alunos que têm transtornos de aprendizagem. Em 2014, os alunos de seis escolas desse município passaram a ter contato com o aplicativo por meio de tablets.
A plataforma permite ao professor planejar atividades e avaliar os alunos, com foco exato nas dificuldades de aprendizagem de cada um. A meta é que no mínimo 60% dos alunos das turmas beneficiadas pelo programa tenham aprendizado adequado na competência de leitura e interpretação de textos e resolução de problemas até 2020.
A ideia é mostrar que a neurociência é praticável e que tem grande potencial em áreas de alta vulnerabilidade. Santa Luzia do Itanhy está sintonizada com o mundo. A Society for Neurosciense anunciou que está organizando uma Mesa Redonda sobre Questões Sociais a ser realizada neste ano em Chicago.
A proposta é debater tópicos de neurociência que tenham impacto na sociedade, particularmente em ética e consciência social. Cem bilhões de neurônios funcionando de forma integrada em meio a 1 quatrilhão de sinapses é um desafio, sem dúvida.
“Se o cérebro humano fosse tão simples, de tal forma que conseguíssemos entendê-lo, seríamos tão simples que não conseguiríamos fazê-lo”, afirmou o filósofo americano Emerson Pugh em 1977. A neurociência não se dá por vencida e vem ganhando algumas jardas nesse terreno. Vale abrir mentes e corações para suas conquistas.
Veja o que as pesquisas apontam sobre como funciona o cérebro que aprende
O cérebro evoluiu para preservar conteúdos que tenham acervo emocional. Quanto mais vezes a amígdala (porção cerebral associada às emoções) for ativada em uma experiência, maiores serão as chances de um evento ser guardado. A proposta, portanto, é balancear o aprendizado “racional” com aspectos da vida cotidiana e sentimental do aluno.
Diferentes regiões do cérebro são restauradas pelo sono e dependem dele. Crianças bem descansadas mentalmente, que tiveram um sono reparador, terão melhor desempenho na sala de aula a curto e a longo prazo. Algumas pesquisas indicam que o início mais tardio das aulas no período da manhã é uma opção interessante para adolescentes em particular, com expressiva melhora no aprendizado e na interação social.
Por si, sem cirurgias nem medicamentos, o cérebro tem a capacidade de se transformar. Essa neuroplasticidade permite que adquiramos novas habilidades se bem estimulados. No livro O Cérebro Que se Transforma, Norman Doidge relata vários casos de pessoas que, submetidas a técnicas baseadas na neuroplasticidade, conseguiram avançar em áreas nas quais “patinavam”.
Pesquisa mostrou que duas crianças interagem melhor face a face. Se você mudar a posição delas e pedir que conversem olhando para o restante da classe, o desempenho e a sincronia cerebral são menores porque se perde a empatia que “amarrou” os dois cérebros.
“Isso é interessante porque a posição das crianças na sala é uma variável que precisa ser considerada na Educação”, afirma Roberto Lent. Daqui a cinco a dez anos, completa ele, a neurociência poderá dar sugestões sobre a geometria da sala de aula.
O neurocientista Roberto Lent, no livro O Cérebro Aprendiz, trata da plasticidade transpessoal, a sincronia entre um cérebro e outro. Ele e sua equipe acompanharam o cérebro de quatro universitários durante uma aula teórica expositiva.
Dividiram os 40 minutos da aula em quatro blocos de 8 a 10 minutos e descobriram que só houve sincronia na atividade cerebral dos quatro estudantes durante o primeiro bloco. Nos demais, os cérebros se ativaram de forma diferente. Uma das hipóteses: depois dos 10 minutos, cada um pensou em algo diferente.
Ideias nascidas de dados neurocientíficos que foram, ou não, comporados
Mito.
Neurocientistas lembram que aproveitamos o órgão totalmente. Um simples abrir e fechar de mãos implica absorver bem mais de 10% dele. Mesmo quando o corpo está em total estado letárgico, o cérebro continua na ativa, controlando funções como atividade cardíaca, respiração e memória.
Outro indício de pleno uso é o de que, quando qualquer célula nervosa deixa de funcionar, ela automaticamente se degenera e morre ou é colonizada por áreas vizinhas. Nosso corpo sabe disso, então não dá folga ao cérebro. Sabe que é vital.
Mito.
A teoria, aqui, é a de que os três primeiros anos seriam os mais ativos e mais passíveis de mudanças cerebrais pelo tanto de sinapses ocorridas nesse período. Isso desencadeou certa overdose de estímulos sobre as crianças. Seria nesse momento ou nunca mais. Sabe-se hoje que, com o tempo, ocorre a filtragem dessas conexões e a criação de outras durante a adolescência, que envolvem tomada de decisões, ponderação de riscos e raciocínio abstrato, por exemplo.
Mito.
São elementos muito utilizados em educação e defendidos por vários, mas, segundo o neurocientista Roberto Lent, não há evidência de que tenham valor educativo, mesmo aqueles que se apresentam com essa intenção. Ele fala especialmente de games disponíveis pelo celular.
Verdade.
Chinês, francês, hebraico. Não importa a língua (se alfabética ou ideográfica) nem a ordem da escrita (da esquerda para a direita ou vice-versa). O cérebro usa a mesma área para a leitura.
Verdade.
A plasticidade do cérebro, ou seja, sua maleabilidade, permite que ele se rearranje de tal forma que uma parte só possa assumir a função de uma que foi comprometida. Crianças com problemas de aprendizado podem adquirir ou readquirir habilidades, desde que bem orientadas e estimuladas.
Com o passar do tempo, a flexibilidade do cérebro diminui, mas não necessariamente se extingue – vide a recuperação de que quem, por causa de acidentes vasculares cerebrais, perdeu certos movimentos.
Entrevista: Cristina dos Santos Cardoso de Sá
O papel da memória na aprendizagem
Segundo a neurocientista, não desaprendemos o que teve significado e foi guardado na memória de longa duração
NOVA ESCOLA Como funciona a memória?
CRISTINA DOS SANTOS CARDOSO DE SÁ Se a aprendizagem é o processo de aquisição de qualquer informação, a memória é a retenção dessas informações. Ela pode ser sensorial, de curto prazo e de longo prazo. A sensorial é transitória e dura segundos, quando o percebido não parece assim tão útil. A de curto prazo é algo mais perene, como o número da vaga de um estacionamento no shopping, que você normalmente descarta do cérebro quando sai do prédio, juntamente com o ticket. Já a de longa duração pode durar meses, anos ou a vida toda. Um bom exemplo: andar de bicicleta. Você pode ficar 10 anos sem andar, que tem armazenada aquela memória motora. Na hora em que for exposta ao estímulo novamente, a habilidade vem à tona. Pode perder em desempenho, mas o programa está lá.
NE O que seria a memória declarativa?
CSCS A declarativa é a memória consciente. Está relacionada a informações e ao que fazer. Eu digo “11 de setembro de 2001” e você logo se lembra do fato e de onde estava nesse dia. A não declarativa é o “como”. Se eu lhe perguntar como se anda de bicicleta, você vai dizer “não sei, eu subo e pedalo”. Ou então vai sentar no banco e pedalar para me mostrar como se faz. São reações condicionadas, que muitas vezes precisam de bastante repetição. No caso da declarativa, às vezes com uma única repetição a pessoa já aprende. Vai depender do grau de importância que a informação tem.
NE A alfabetização, então, é declarativa?
CSCS Sim, e, dentro da declarativa, é uma memória semântica. Se a criança aprendeu a ler e escrever, vai guardar o aprendido para a vida toda porque isso tem um significado para ela, sabe que precisa disso para se comunicar. Já quando o significado é fraco, ela acaba esquecendo. Algumas crianças têm dificuldade em matemática porque, tirando as operações de soma e subtração, não sabem a aplicação palpável disso no dia a dia. Se no meu aprendizado de matemática eu tivesse recebido essa noção pragmática, entenderia melhor alguns dados estatísticos, por exemplo.
NE A memória também tem seus momentos certos?
CSCS O cérebro da criança é uma esponja, mas tem limite. Aos 7 anos, ela consegue gravar na memória de curta duração um número de seis dígitos, por exemplo. Mais que isso, é difícil.
Cristina dos Santos Cardoso de Sá é professora da Unifesp e doutora em neurociência do comportamento
Ilustrações: Bárbara Malagoli
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