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Jornalismo

Déficit de atenção: há um excesso de medicalização

O uso de medicamentos aumentou 775% em dez anos no Brasil

PorRenata Ishida

27/02/2019

Pessoa pegando comprimidos, pílulas brancas, com fundo esverdeado
Foto: Getty Images

A Educação do século 21, expressão que já se transformou em um jargão na imprensa, nos congressos e em encontros de educadores, tem sido descrita, majoritariamente, através da perspectiva das transformações que o avanço da tecnologia tem proporcionado nos últimos tempos, como o impacto nas formas da transmissão de informação, no mercado de trabalho e suas profissões e nas próprias relações humanas.

Proponho, aqui, usarmos uma lente diferente: a da saúde. O modo como a Educação tem sido entendida e praticada no Brasil pode ser discutida a partir dos resultados de algumas pesquisas realizadas nos últimos anos referentes ao aumento alarmante do uso de medicamentos psiquiátricos entre crianças e adolescentes no Brasil e no mundo.

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De acordo com pesquisa realizada pelo Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), em dez anos (de 2003 a 2012), o consumo do metilfenidato – a conhecida Ritalina ou Concerta – o mais utilizado na tentativa de reverter os sintomas do controverso Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), aumentou 775% entre crianças e adolescentes na faixa dos 6 aos 16 anos.

Os sintomas mais frequentes que fazem parte da descrição, relatada pelo manual de psiquiatria (DSM 5), do quadro de TDAH são: agitação, falta de atenção, impulsividade. Manifestações não inusitadas na infância e adolescência que podem ser oriundas de questões circunstanciais e não de saúde, mas que também podem ser sinais de outros quadros psicopatológicos, como ansiedade ou depressão.

A pressa por uma resposta e a falta de critérios para distinguir uma coisa da outra (por isso o termo “controverso” para caracterizar o TDAH) aumentam as chances dessas crianças receberem esse diagnóstico e, consequentemente, o medicamento. De fato, não existe um exame clínico nem psicológico que determine de forma objetiva a existência de TDAH.

Então, será que o fato de uma criança se distrair ou agir impulsivamente ou ainda estar inquieta significa que ela possui uma patologia? Será que essas questões devem necessariamente ser cuidadas através de medicação? E o que isso tem a ver com a Educação?

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O principal caminho para se chegar a esse diagnóstico, no Brasil, tem seu início na escola, a partir das dificuldades de aprendizagem e/ou insubordinação de determinada criança ou adolescente. São corriqueiras hoje nas escolas as cenas em que professores e coordenadores encaminham alunos para avaliação psiquiátrica, neurológica e psicológica com suspeita de TDAH e/ou supervisionam o uso de medicação daqueles já diagnosticados. A responsabilidade da falta de atenção, nesse caso, seria sempre de uma incapacidade particular do aluno e não de uma possível aula desinteressante do professor ou outra situação do contexto escolar.

Além dos professores, mães e pais passaram a exigir diagnóstico e medicamento em busca de aquietar os conflitos na escola e dentro de casa. Encontrar um culpado pelos problemas – e que tem possibilidade de desaparecer com o uso de uma pílula – pode ser menos angustiante do que escutar o que uma criança ou um adolescente está querendo dizer com seu comportamento e sinais.

Além disso, os efeitos do uso de medicamento psicotrópico em crianças e adolescentes ainda são desconhecidos, tendo em vista que eles estão em desenvolvimento físico e emocional.

Com essas provocações, o intuito não é condenar as avaliações médicas nem a pesquisa de novos tratamentos medicamentosos. Até porque foi através do aprofundamento do estudo das psicopatologias e sua divulgação que as pessoas tiveram mais acesso à informação e as crianças, que antes eram taxadas de incapazes, puderam ter a oportunidade de aprender melhor.

O alerta, portanto, é o seguinte: será que, na Educação do século 21 (seja na escola seja em casa), estamos transformando em patologias as dificuldades do dia a dia? Será que o mais saudável é medicar uma criança afim de que ela se adapte e se conforme a um mundo que nós mesmos criticamos?

Este não é um texto que nega os diagnósticos como aliados do cuidado, mas um alerta de que eles não devem ser usados como rótulos, classificando as crianças e adolescentes como passíveis ou não de serem educados. Este é um texto que afirma a importância de escutar os estudantes na sua singularidade, como protagonistas de suas histórias e que fazem parte de um contexto familiar e social. Calá-los em suas tentativas de se comunicar com os adultos, em prol de uma “normalidade”, pode significar calar não só os conflitos, mas também aquilo que os alimenta: o pensamento crítico, a curiosidade, a capacidade imaginativa. Ou seja, pode significar calar os propulsores do ato de educar que esperamos para o século 21.

Renata Ishida é psicóloga e consultora pedagógica do LIV – Laboratório Inteligência de Vida, organização especializada em educação socioemocional

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