Como a diversidade pode potencializar a Educação
Marinaldo, Marcos e Cristiane não tiveram medo de usar as diferenças na turma e a diversidade social e étnico-racial para impulsionar a aprendizagem de seus alunos
PorAna Prado
02/10/2018
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Jornalismo
PorAna Prado
02/10/2018
Você conhece bem esse desafio: lidar com a heterogeneidade dentro da sala de aula não é fácil. Ainda que os alunos de uma mesma turma tenham a mesma idade e venham de uma mesma classe social, seus saberes e interesses são distintos. Assim, em cada planejamento, é preciso levar em conta cada um dos estudantes para contemplar diferentes maneiras de aprender, os diversos ritmos dos estudantes e os conhecimentos prévios deles.
No caso de três dos vencedores do Prêmio Educador Nota 10 de 2018, o desafio vai além: suas turmas são formadas por estudantes de idades e níveis de conhecimento muito diferentes e, em algumas situações, convivem com pessoas que sequer falam a mesma língua. Em vez de enxergar a situação como um obstáculo, eles tiram dela um incentivo para enriquecer as aulas e promover um aprendizado real e significativo. Foi assim na classe multisseriada do interior do Pará, na turma de jovens e adultos de São Paulo e na comunidade que recepciona imigrantes em Santa Catarina.
Cada um a seu tempo
De 4 anos de idade ao 5º ano do Fundamental, todas as crianças que moram nas ilhas de Barcarena, no Pará, são alunas de Marinaldo Sarmento de Souza em uma turma multisseriada. Para dar conta dessa diversidade, em cada atividade, o professor aposta em diferentes agrupamentos para que todos aprendam, de acordo com o que é esperado para sua idade (leia quadro abaixo).
Para a proposta ganhadora do Prêmio Educador Nota 10 de 2018, trabalhou o gênero fábula. O primeiro passo consistiu em despertar a curiosidade dos alunos sobre o tema e mapear o que eles já sabiam. Depois, realizou atividades para complementar as informações sobre o gênero estudado de acordo com a idade de cada criança.
E havia as atividades de produção textual, as mais importantes do trabalho. A ideia inicial era que aqueles que já dominavam a escrita auxiliassem os outros, tomando a frente na criação da narrativa. Não foi o que aconteceu. “Quem acabou liderando a produção foram alunos que ainda não dominavam a leitura e a escrita convencionais. Quebramos um paradigma ao revelar que é possível ser um verdadeiro produtor de texto sem saber escrever”, explica. Assim, mudou a dinâmica: os mais novos atuaram como produtores e os mais velhos como escribas – embora todos pudessem contribuir para a construção do texto. As narrativas contam ainda com elementos da vivência dos alunos, como os seres vivos amazônicos. Em uma fábula que teria um animal rápido e ágil, por exemplo, os alunos preferiram trocar o coelho pela cotia.
O passo seguinte foi a revisão coletiva dos textos. O professor selecionou algumas produções da turma, copiou-as na lousa e orientou os alunos para que, em conjunto, consertassem os erros e as tornassem mais fluidas e coesas.
Como sua turma era formada por alunos em diferentes etapas de aprendizagem, Marinaldo intercalou a produção textual coletiva com atividades voltadas às necessidades específicas de cada ano, incluindo o processo de alfabetização dos mais novos. Havia, por exemplo, tarefas em que alguns deles deveriam montar com palavras recortadas as frases da moral das fábulas que tinha trabalhado. “O professor Marinaldo busca que os conhecimentos dos alunos, em toda sua diversidade, sejam ouvidos e considerados para que possam entender melhor o gênero textual selecionado”, afirma Miruna Genoíno, orientadora pedagógica da Escola da Vila, na capital paulista, e selecionadora do Prêmio Educador Nota 10.
O trabalho do professor se tornou referência para escolas paraenses, como atesta o coordenador pedagógico da rede municipal de Barcarena, Roberto Carlos Dias dos Anjos: “Ele trabalha questões que ainda estão começando a ser entendidas no Brasil, como a aplicação de sequências didáticas para classes multisseriadas sem deixar ninguém à margem do processo educativo”. “O olhar para esse contexto considerando estratégias nas quais todos os alunos têm espaço em seus diferentes saberes pode fomentar novas práticas, inclusive em salas de aula regulares, com alunos em idades mais próximas, mas certamente com conhecimentos variados”, completa Miruna.
A diversidade dentro e fora da escola
E quando a sala de aula não tem apenas alunos de faixas etárias diferentes mas também com religiões e trajetórias muito diversas? O professor Marcos Ribeiro das Neves, de São Paulo, desenvolveu sua própria estratégia para encarar o desafio ao dar aulas de Educação Física para uma turma de alfabetização do CIEJA Campo Limpo. Seus alunos tinham entre 15 e 60 anos, mas tal heterogeneidade, em vez de assustá-lo, o animava.
O trabalho premiado abordava o maracatu, uma manifestação cultural pernambucana e afro-brasileira. A turma havia mostrado interesse em estudar os saberes das culturas periféricas, e uma aluna que veio de Recife contou que em sua família havia brincantes de maracatu. A reação de outros alunos chamou a atenção. “Muitos começaram a se benzer e murmurar que aquilo era ‘coisa do demônio’”, conta o educador. O caso lhe deu a certeza de que estava diante de um ótimo tema: poderia trabalhar uma manifestação cultural pouco conhecida e combater preconceitos decorrentes desse desconhecimento. “As pessoas não têm culpa de ser preconceituosas, é algo que vamos aprendendo socialmente. A escola é que tem esse papel de desconstrução”, diz o professor.
Marcos sabia pouco sobre o tema, mas isso não o intimidou. Ele fez uma imersão em um grupo de maracatu para entender seus códigos e buscou outros conhecimentos junto com a turma. Durante as aulas, Marcos incentivou a criação de perguntas e não dava as respostas. Em vez disso, orientava os alunos para que eles próprios as procurassem, tanto em entrevistas com praticante que ele levava para a sala de aula quanto em buscas na internet. Neste último caso, organizou os alunos em grupos que combinassem diferentes saberes: colocava aqueles com domínio do computador para auxiliar os que não o possuíam, e aqueles que sabiam ler e escrever para auxiliar os outros na leitura e nos registros.
As pesquisas não se limitaram ao maracatu em si. Ao observar alunos que se recusavam a participar da aula por temer a relação com práticas religiosas de matriz africana, o professor discutiu a escravização dos negros no Brasil e os motivos por que se costuma estranhar, inferiorizar e condenar os saberes desse grupo. “Esse não é um trabalho convencional de Educação Física, e não se trata apenas do maracatu, é um projeto de desconstrução de preconceitos e valorização das culturas periféricas”, destaca Marcos Mourão, professor de Educação Física da Escola da Vila e selecionador do Prêmio Educador Nota 10.
A avaliação final envolveu a construção coletiva de um cortejo, apresentado pelos alunos na abertura do seminário que a escola realiza anualmente. No fim, a percepção dos alunos sobre o que era o maracatu mudou. Um aluno lhe confessou: “Professor, na aula passada, fomos para a sala de informática e saí achando que maracatu fosse ‘macumba’. Hoje já entendo que maracatu é história, é cultura de um povo”.
Falando a mesma língua
A professora de inglês Cristiane Dias, de Criciúma (SC), buscou trazer o contexto da diversidade de fora para dentro da escola. É que a cidade passou a receber imigrantes haitianos, ganeses e senegaleses desde 2014 e, com isso, tornou-se cada vez mais comum encontrar pessoas que não falavam português pelo local.
Presenciar uma situação em que imigrantes tentavam sem sucesso se comunicar com a atendente de uma loja fez ela refletir sobre seu papel de educadora. “Me perguntei se meus alunos tentariam ajudá-los ou se teriam medo ou vergonha de falar inglês”, conta. As questões lhe serviram de inspiração para criar a sequência didática We Speak the Same Language, trabalhada com o 9º ano da EEB Maria Jose Hulse Peixoto.
A professora usou as aulas de inglês para abordar a questão e não só ajudar a turma a se comunicar com os estrangeiros mas também relembrar a história de imigração que deu origem à cidade. Cristiane começou apresentando o conceito de xenofobia e discutindo os antepassados dos alunos. “Refletimos sobre o fato de sermos todos, de alguma forma, imigrantes”, conta.
Em seguida, os alunos discutiram como usar nomes de lugares, adjetivos e direções em inglês. Ao fim do período, estavam preparados para criar diálogos entre alguém que pede informações sobre um lugar e alguém que fornece a localização. “O trabalho confere propósito ao aprendizado da língua estrangeira já que ela se apresenta como possibilidade de incluir os ‘de fora’”, explica Laura Nassar, professora do Colégio Oswald de Andrade, em São Paulo, e selecionadora do Prêmio Educador Nota 10. Uma dificuldade do trabalho foi quebrar a timidez e incentivar os alunos a, de fato, falarem. Para isso, recorreu à tecnologia (conheça no quadro abaixo aplicativos que ajudam nessa tarefa). “Com os apps, eles ouviram diferentes sotaques e perceberam as nuances do idioma falado, o que não acontece quando somente o professor fala a língua na sala”, completa.
Ainda que os estudantes não sejam fluentes, a atividade despertou o interesse e aumentou a confiança deles para falar com estrangeiros. Ester Madeira, 14 anos, passou por uma situação do tipo: “Um dia, quando eu estava na casa da minha avó, um homem parou no portão para pedir água em outra língua. Consegui me comunicar e hoje eu e minha família somos amigos deles”.
O professor Marcos Garcia Neira, diretor da Faculdade de Educação da USP, elogia a forma como os professores lidaram com a diversidade dentro e fora da escola. “Todas as salas de aula são contextos multiculturais. O trabalho desses três colegas mostra que os professores precisam lidar com a diferença e a pluralidade de visões”, afirma.
Ilustrações: Rachel Denti
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