Como os professores do Rio estão aprendendo a proteger seus alunos
Habituados a ensinar, professores da rede municipal do Rio de Janeiro estão aprendendo, entre outras coisas, a identificar os sinais de perigo e onde se abrigar em casos de tiroteio
Treinamento feito em escola por integrantes da Cruz Vermelha para garantir a segurança dos alunos em áreas de risco, em 2013 Foto: Divulgação
Durante 14 anos, Aura Liane de Souza trabalhou como diretora de uma escola municipal no entorno do Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio. Neste período, ela passou por alguns dos muitos perrengues que todo diretor de escola em área considerada de risco no Rio de Janeiro já está acostumado a passar, como ouvir tiroteios na vizinhança, proteger seus alunos de bala perdida e encontrar projétil em sala de aula. Em julho de 2017, Aura foi escolhida para integrar o grupo de 41 profissionais que, entre professores, psicólogos e assistentes sociais, participaram do curso Acesso Mais Seguro para Serviços Públicos Essenciais (AMS), ministrado por agentes do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV). Entre outras lições, ela aprendeu a delegar responsabilidades. “Quando era diretora, eu tomava, sozinha, todas as decisões. Se, naquela época, já existisse um protocolo de segurança, todos saberiam o que fazer”, explica Aura, hoje à frente do núcleo responsável por disseminar o conhecimento adquirido no curso da Cruz Vermelha com outros diretores do município.
De lá para cá, os 41 multiplicadores já repassaram o que aprenderam para diretores, professores e funcionários de 259 escolas do município. Dessas, 186 já têm seus protocolos de segurança. A expectativa da Secretaria Municipal de Educação (SME) é que, até 2020, todas as 1.537 unidades saibam como lidar com a violência que, só em 2017, obrigou 467 escolas a suspender suas aulas. Mas, afinal, o que os professores do município do Rio têm a aprender com a Cruz Vermelha? Em aulas práticas e exercícios simulados, a comunidade escolar é orientada a estar mais atenta aos sinais de uma eventual disputa de facções ou operação policial. Ou, ainda, a identificar o lugar mais seguro para proteger seus alunos de balas perdidas. “Não existe ‘o lugar mais seguro’ de uma escola. Isso depende de uma série de fatores que vão desde a localização da escola em relação ao tiroteio até o material usado para construir a unidade, como concreto, drywall ou aço”, explica Janaína de Souza, uma das assessoras do curso Acesso Mais Seguro (AMS), da Cruz Vermelha. “Quando a escola não tem um local seguro para servir de abrigo em situação de tiroteio, outros protocolos são adotados, como deitar-se no chão e evitar vãos como portas e janelas”.
O curso Acesso Mais Seguro (AMS) já foi ministrado em países como Ucrânia, Líbano e Colômbia. No Brasil, está sendo implementado em cinco municípios: Rio de Janeiro e Duque de Caxias (RJ), Florianópolis (SC), Porto Alegre (RS) e Fortaleza (CE). No Rio, é uma adaptação do Projeto Rio que, entre 2009 e 2013, procurou reduzir os impactos da violência em profissionais das áreas de Saúde e Educação, que atuavam em comunidades carentes. Em linhas gerais, pode ser dividido em três etapas: avaliar o grau de vulnerabilidade da unidade, elaborar um plano de ação para minimizar os riscos da violência e definir o grupo de tomada de decisão para conduzir as situações de crise. “Não existe um protocolo-padrão. Cada unidade e seu entorno precisam ser avaliados para que a metodologia seja adaptada à sua realidade”, pondera Janaína, acrescentando que esse plano de ação é sigiloso e não deve ser divulgado para ninguém que não faça parte do quadro de funcionários da escola ou da gestão da Secretaria de Educação.
Um bom exemplo de que os protocolos de segurança não são receita de bolo ou fórmula matemática são os sinais a que todos os membros da comunidade escolar – de funcionários a diretores – precisam estar atentos. Em uma determinada área, esse alerta pode partir de uma movimentação estranha. Em outra, do esvaziamento das ruas. Numa terceira comunidade, a explosão de fogos de artifício. Outros indícios de que algo está por acontecer: a reclusão de moradores, o barulho de helicópteros e até mesmo o sumiço de motoboys que costumam fazer o serviço de transporte em algumas comunidades. “Depois que fiz o curso, passei a ter um olhar mais atento ao que acontece no entorno da escola. Se desconfio que vai ter operação ou confronto, transfiro a aula de Educação Física do pátio para sala de aula. Não espero acontecer nada de grave para tomar a decisão. Se necessário, mudo a rotina escolar em função do que está acontecendo no entorno da escola”, explica Aura.
Professores durante treinamento feito pela Cruz Vermelha para aumentar a segurança de docentes e alunos nas escolas municipais do Rio de Janeiro, em 2017 Foto: Divulgação
Autodidata em gerenciamento de crise Joseli Lima, professora de educação especial do CIEP Gustavo Capanema, no Complexo da Maré, ainda não fez o curso. Diz que está ansiosa para fazer. Quando indagada sobre o que espera do treinamento, é taxativa: trabalhar o emocional do professor. “O nervosismo é tanto que, na hora do tiroteio, muitos colegas não sabem como agir. Quando ouvem tiros, as crianças se desestruturam. Temos que dar suporte emocional porque somos a principal referência delas”, afirma. Com a experiência de quem dá aula há 18 anos em áreas dominadas pelo tráfico, Joseli já desenvolveu suas próprias estratégias de sobrevivência. Quando ouve o espocar de tiros lá fora, orienta seus alunos a se abaixarem e, engatinhando, se dirigirem para o corredor. “É o lugar mais seguro porque tem várias camadas de concreto”, justifica. “Uma colega minha, que trabalha em outra escola, leva os alunos para o banheiro”. Sentados no corredor, Joseli procura acalmar seus alunos tocando violão ou improvisando dinâmicas. Demonstrar medo? De jeito nenhum. Cair no choro? Nem pensar! “Nessas horas, procuro agir com firmeza. Dependendo da intensidade do conflito, não deixo meus alunos sequer ir ao banheiro. Já houve estudante que, durante o tiroteio, entrou em sala para pegar a mochila e levou um tiro”, relata.
O sociólogo Ignácio Cano, coordenador do Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), elogia a iniciativa, mas pondera que a medida mais importante a ser tomada é reduzir o número de operações policiais em horário escolar. “Nenhuma operação, seja para cumprir mandados de prisão, seja para apreender armas ou munição, justifica a morte de um estudante”, afirma. Já o educador Daniel Cara, coordenador geral licenciado da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, salienta que, no Brasil, a segurança pública só avançou quando investiu em inteligência e no diálogo com a comunidade. “Foi assim que o triângulo da morte paulistano, composto pelo Jardim Ângela, Capão Redondo e Jardim São Luís, superou a violência”, exemplifica. Doutora em Sociologia e especialista em Educação pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), Adriana Dias de Oliveira tem outra sugestão a dar: debater com os alunos a violência contra a escola, aquela que existe na sociedade e que repercute na rotina escolar. “Saber como agir em situações de risco é importante, mas, talvez, seja interessante discutir em classe a cultura da violência que permeia nosso cotidiano. A escola pode incentivar e propor a construção de alternativas que visem o combate da violência no presente e, quem sabe, a transformação da sociedade no futuro”, afirma.
Participante do curso Acesso Mais Seguro para Serviços Públicos Essenciais (AMS), ministrado por agentes do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, desde julho de 2017 Foto: Divulgação (CICV)
A barra tá limpa ou a chapa tá quente? No fogo cruzado entre traficantes e policiais, gestores e docentes buscam alternativas. O diretor de uma escola da Maré, na Zona Norte do Rio, cogita a hipótese de construir uma “saída de emergência” para o CIEP que funciona logo atrás de sua unidade. Além de funcionar como rota de fuga, as paredes do CIEP são de concreto, enquanto as da escola são de gesso. Outra ideia, já adotada por algumas comunidades escolares, é a criação de grupos no WhatsApp para monitorar, em tempo real, a situação nas escolas. Antes de ingressar em áreas de risco para trabalhar ou buscar os filhos, os usuários apuram se “o clima tá tranquilo” ou se “o bicho tá pegando”. Na opinião de Janaína de Souza, essa ideia é positiva e pode ajudar. Mas demanda cuidados: “Não é recomendado tirar fotos ou gravar vídeos que, em caso de roubo ou furto dos aparelhos, podem colocar a vida dos usuários em risco”, alerta.
Enquanto aguarda a convocação da Secretaria da Educação para fazer o curso da Cruz Vermelha, a professora Joseli Lima, do CIEP Gustavo Capanema, reconhece que tais protocolos são importantes para garantir a segurança dela e a de seus alunos, mas questiona: até quando vamos viver assim? Será que vou ter que me preocupar com a minha segurança em sala de aula a vida toda? Será que essa violência nunca vai ter fim? “Minha única preocupação é salvar vidas. Não quero que meus alunos entrem para o mundo do crime, nem que virem estatística de violência urbana. Às vezes, sinto como se estivesse tentando apagar um incêndio com um balde d’água”, confessa.
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