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Jornalismo

Escola sem Partido: audiências ouviram opiniões pró e contra projeto?

Esta reportagem faz parte da campanha Mentira na Educação, não!, que checará boatos, declarações e notícias sobre Educação

PorJudite Cypreste e Luiz Fernando Menezes, da Aos Fatos

18/05/2018

O deputado Flavinho (PSC-SP) distorceu a opinião de opositores e usou dados insustentáveis no relatório referente ao PL 7180/2014, que apresentou no dia 8 de maio na Câmara dos Deputados. O projeto de lei promove os ideais do Escola sem Partido, defendendo a distribuição de cartazes com os “seis deveres do professor” em todas as escolas do país e incorpora no ensino os valores da família em relação à educação moral, sexual e religiosa.

A partir da data de apresentação do voto do relator, há o prazo de cinco sessões para a discussão de emendas ao projeto de lei e votação na Comissão Especial (ainda não há data confirmada para essas sessões). Se for aprovado na comissão, o projeto não precisará passar pelo plenário da Câmara, seguindo direto para apreciação no Senado.

Em seus argumentos, o relator mencionou as audiências públicas desenvolvidas pela comissão, o modelo de laicidade brasileiro e a ideologia de gênero. Aos Fatos, em parceria com a Nova Escola, checou quatro dessas declarações.

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IMPRECISO

Esta Comissão tem desenvolvido desde o ano passado audiências públicas, ouvindo os representantes da sociedade civil, professores, filósofos, especialistas, estudantes, procuradores, pedagogos, reitores e advogados, com o desiderato de subsidiar tanto o presente relatório, como os demais deputados membros da Comissão, para que livremente se posicionem pelo seu conteúdo.

A Comissão Especial da Câmara dos Deputados responsável pelo PL 7180/14 (e outros projetos com a mesma temática) realizou, ao todo, 17 audiências públicas desde fevereiro de 2017. Foram convidadas 31 pessoas, entre elas estudantes, professores, advogados, políticos e um representante religioso. No entanto, o deputado omite que grande parte da comissão e dos expositores eram favoráveis ao projeto.

Dos 31 convidados, apenas 10 discursaram contra o projeto de lei. Ou seja, os outros 21 (67,7%) eram favoráveis ao texto. Vale destacar que Miguel Nagib, o criador do movimento Escola sem Partido, foi o único convidado que teve espaço para falar em duas audiências diferentes.

O deputado Flavinho chegou a criticar a ausência de expositores contrários à proposta: “Eles são convidados para exporem suas opiniões em audiências públicas, mas recusam o convite alegando choque de agenda”. Não foi possível confirmar quem foram os convidados e os motivos pelos quais decidiram comparecer às audiências.

É importante ressaltar também que a Frente Parlamentar Evangélica lidera a Comissão Especial responsável pelo projeto de lei: dos cinco integrantes da cúpula principal (presidente, três vices e relator), apenas Hildo Rocha (PMDB/MA) não pertence à bancada. Além disso, dos outros 18 titulares, 11 também são da frente parlamentar. A Frente atuou  durante a tramitação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para que fossem excluídas menções a igualdade entre meninos e meninas e o respeito às orientações sexuais.

Audiência pública sobre o PL 7180/14. Com o microfone, Dep. Flavinho (PSC - SP), relator do projeto. Crédito: Alex Ferreira/Câmara dos Deputados

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INSUSTENTÁVEL

O Brasil não adotou o modelo francês de laicidade, que repele toda manifestação de religiosidade nos espaços públicos, mas o modelo americano.

Mesmo que no preâmbulo da Constituição Federal haja uma citação a Deus, o Brasil, constitucionalmente, é um Estado laico conforme o artigo 19, que diz que “é vedado (...) estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”. Isso significa que o Estado brasileiro não pode se manifestar religiosamente.

Essa discussão sobre modelos de laicidade não é nova nos ambientes acadêmicos: em 1903, o jurista Rui Barbosa defendeu que a separação entre Estado e religião no Brasil seguia o modelo americano; enquanto Aristides Milton lamentava que a Constituição brasileira não tenha seguido os norte-americanos. Ou seja, já na Primeira República, não se tinha um consenso sobre qual era a laicidade que o Brasil seguia.

O deputado Flavinho segue a ideia do advogado e membro do Conselho Diretivo Nacional da Anajure (Associação Nacional dos Juristas Evangélicos), Thiago Rafael Vieira. Em um de seus artigos, ele afirma que o modelo atual defende “uma laicidade neutra garantidora da ordem espiritual objetivada por meio do fenômeno religioso que se manifesta pela fé de cada pessoa, e do conjunto de valor em que acreditam” e que, portanto, tem forte inspiração norte-americana.

O artigo “Laicidade e liberdade religiosa no Brasil” segue um raciocínio parecido, mas também aponta uma influência do modelo francês: “O modelo de laicidade do Brasil sofreu influências francesas e norte-americanas na sua formação, não havendo uma proposta elaborada prévia à sua institucionalização”. Segundo o texto, nossa laicidade é “de princípio”: “rejeita a confessionalidade do Estado e assegura a isonomia entre os diferentes credos e formas de organização religiosa”.

Portanto, não há consenso no meio acadêmico, mas é possível dizer que há influência de ambos modelos. Do ponto de vista político, a redação do artigo sobre laicidade na constituição não seguiu nenhum dos dois de maneira intencional.

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INSUSTENTÁVEL

O que sabemos por experiência concreta é que uma cultura heteronormativa foi imprescindível à perpetuação da espécie humana e ao desenvolvimento da Civilização Ocidental.

Cultura heteronormativa é bastante diferente da prevalência de relações heterossexuais em determinadas sociedades e, sobretudo, da existência matrimônios heterossexuais para fins de reprodução. Não foi encontrada qualquer pesquisa confiável que faça a mesma afirmação de Flavinho sobre a heteronormatividade ser imprescindível à perpetuação da espécie humana. No entanto, há textos que defendem que é possível, sim, a sobrevivência da espécie em uma cultura não-heteronormativa.

Ao contrário do que o deputado sugere, a civilização ocidental foi marcada por práticas sexuais não-heteronormativas. Na Grécia Antiga, por exemplo, a prática do que convencionou-se chamar de pederastia era comum. Ocorria quando um homem adulto casado com uma mulher mantinha relação sexual e afetiva com um adolescente ou jovem como intercâmbio de ensinamentos sexuais e filosóficos entre professor e aluno (acreditava-se “que o amor entre homens fomentava o desenvolvimento das melhores qualidades do jovem” segundo a tese de mestrado “Não é uma fase”, defendida na PUC-Rio em 2012). Já em Roma, “o homem que hoje chamamos de bissexual era a norma”: eram aceitas as relações entre quaisquer parceiros desde que respeitassem a ordem de dominação da época (a penetração do homem na mulher, do mestre no escravo e do homem romano no homem estrangeiro).

No livro "Gay Indians in Brazil: Untold stories of the colonization of indigenous sexualities",  publicado na Suíça no ano passado pelos pesquisadores brasileiros Barbara Arisi e Estevão Fernandes, uma investigação revelou que relações homossexuais em tribos indígenas no Brasil pré-colonial eram comuns e aceitas entre os índios brasileiros. De acordo com Estevão Fernandes, um dos autores, o preconceito só chegou com a colonização, quando as relações homoafetivas passaram a ser consideradas crime com a condenação passível à morte.

Para a pesquisadora Cristina Ternes Dieter, a influência das religiões na Idade Média foi a principal perpetuadora do pensamento que atrela as relações sexuais e a perpetuação da espécie. A partir desse período, qualquer tipo de “relação sexual praticada apenas como fonte de prazer” passou a ser considerada pecado. Para Dieter, o argumento apresentado pelo deputado é “totalmente descabido, pois para isso acontecer todas as pessoas precisariam se tornar homossexuais”.

A ideia de que a heteronormatividade está ligada à perpetuação da espécie foi questionada já em 1992, em um artigo da professora Maria Andréa Loyola. De acordo com ela, a lógica de homem e mulher que só se procriam no casamento já estava diminuindo naquela época, dando espaço para outras formas de reprodução como famílias monoparentais e barrigas de aluguel. O Brasil, por exemplo, de 2005 a 2015, teve um aumento de 1,1 milhão de famílias compostas por mães solteiras.

Fora do Brasil, é possível encontrar literatura científica ainda mais extensa. Um artigo da revista acadêmica Sexuality and Culture de 2018, que analisou a Educação sexual de crianças australianas, por exemplo, critica a ideia de ligar a heteronormatividade e a procriação: trata-se de uma “normalização da heterossexualidade” e um “reforço na construção de crianças como futuros indivíduos heterossexuais”. O texto defende que não é possível ensinar às crianças “o mesmo discurso científico hegemônico e moralizante” de 50 anos atrás, já que estão havendo mudanças no acesso de informação, nas estruturas da família e também no conhecimento sobre as identidade não-heterossexuais.

Anna Weissman, professora de Ciências Políticas da Universidade da Flórida, chama essa lógica de "repronormatividade": uma narrativa compulsória que privilegia os atos sexuais que levam à reprodução e onde a sexualidade é vista como uma força utilitária para a propagação da espécie. Para a autora, é um problema haver uma certa resistência à "reprodução não-normativa", como a inseminação artificial, quando o casamento "não-normativo" já é aceito em diversos países (leia o artigo escrito por ela).

Miguel Nagib, criador do movimento Escola sem Partido  Foto: Billy Boss/Acervo/Câmara dos Deputados

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INSUSTENTÁVEL

A verdade é que a maioria esmagadora, tanto de intelectuais como de indivíduos comuns, acredita que “homem” e “mulher” não são, de modo algum, conceitos líquidos; mas que tais “gêneros” acham-se em plena consonância com seus respectivos “sexos” biológicos

Não foram encontrados dados confiáveis que mostrem as porcentagens de pessoas que defendem ou não os “conceitos líquidos” de gênero. Portanto, não é possível fazer essa afirmação.

Mas, em relação a outros assuntos abordados pelo projeto, existem algumas pesquisas. O Datafolha, por exemplo, mostrou, em 2017, que 74% da população acredita que a “homossexualidade deve ser aceita por toda a sociedade” e que apenas 19% avaliavam que a “homossexualidade deve ser desencorajada por toda a sociedade”.

Uma outra pesquisa, essa do Paraná Pesquisas feita para o jornal Gazeta do Povo sobre “o ensino da ideologia de gênero nas escolas”, por exemplo, disse que 87% dos entrevistados era contra. Isso, no entanto, não significa que a maioria da população não acredite que “uma pessoa pode escolher o próprio gênero”.

No ano passado, a CDD/Ibope Inteligência, por pedido do grupo Católicas pelo Direito de Decidir, mostrou que a maioria da população acredita que os alunos deveriam receber aulas de Educação sexual no que tange à segurança e métodos contraceptivos e igualdade entre homens e mulheres.

Vale lembrar que o Senado realizou uma pesquisa pública sobre o tema da Escola sem Partido (em relação ao PLS 193/2016). O texto, que propunha uma série de diretrizes para evitar temas como a própria ideologia de gênero, teve mais votos de desaprovação (210.819) do que os de aprovação (199.873).

Essa reportagem faz parte da campanha Mentira na Educação, não!, que realizará checagens de notícias sobre Educação. A iniciativa é realizada por NOVA ESCOLA, com apoio do INSTITUTO UNIBANCO, INSTITUTO ALANACANAL FUTURA e FACEBOOK.

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