O que Marielle tem a ensinar sobre Educação aos jovens carentes
Formada em Ciências Sociais na PUC-Rio , a vereadora carioca Marielle Franco enxergava o estudo como a única forma de “subir na vida”
26/03/2018
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Jornalismo
26/03/2018
Com seu habitual bom humor, a vereadora carioca Marielle Franco, morta a tiros no dia 14 de março, aos 38 anos, gostava de dizer que “favelada, para subir na vida, além de pegar o elevador, tem que se esforçar muito”. Eleita em 2016 com 46.502 votos – a quinta maior votação no Rio –, ela acreditava tanto nisso que incluiu essa citação nos agradecimentos de sua dissertação de mestrado, em 2014. “Ela entendia a Educação como uma arma contra as desigualdades sociais”, afirma sua orientadora, Joana Ferraz. E “se esforçar muito” foi o que Marielle Francisco da Silva, a primogênita de Antônio e Marinete, um casal de retirantes de Alagoa Grande, na Paraíba, mais fez na vida.
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“Marielle sempre acreditou que, para se tornar protagonista da própria história, precisava estudar muito. Desde cedo, viu na educação um instrumento de transformação social”, reitera Cláudia Rose Ribeiro da Silva, que deu aula de História para Marielle em 1998, no Curso Pré-Vestibular (CPV) do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM).
Marielle Franco nasceu no dia 27 de julho de 1979, no Morro do Timbau, uma das 16 comunidades que integram o Complexo da Maré, na Zona Norte do Rio. Sua trajetória acadêmica teve início na Escola Luso Carioca, em Bonsucesso – hoje rebatizada de Colégio CELC. Foi lá que fez o Ensino Fundamental. Para ajudar os pais a pagar a escola, começou a trabalhar aos 11 anos. Concluiu o Ensino Médio estudando à noite no Colégio Estadual Professor Clóvis Monteiro, em Manguinhos. “Tive a educação que foi possível, mas sempre fui motivada a estudar, o que contribuiu muito para que eu escolhesse trilhar esse caminho de aprofundamento nos estudos”, escreveu, em sua dissertação. “Por tudo isso, agradeço muitíssimo, de todo coração, aos meus pais, Marinetinha e Toinho. Graças a eles sou o que sou hoje”. Sua irmã, Anielle, cinco anos mais nova, é formada em Jornalismo. Hoje, dá aula de inglês em quatro escolas particulares.
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Decidida a cursar uma faculdade, Marielle matriculou-se no CPV da Maré. Fundado em agosto de 1997, o projeto já ajudou 1.600 jovens da comunidade a conquistar um diploma universitário. A iniciativa foi tomada depois que um levantamento feito pelos fundadores do CEASM apontou que menos de 1% dos moradores da Maré, bairro com a segunda maior taxa de analfabetismo do Rio de Janeiro, conseguia ingressar na universidade. Aos 19 anos, Marielle Franco fez parte da primeira turma, em 1998. “Quando a gente começou, a sede ainda não estava pronta. As salas precisavam de reforma”, diz Cláudia, uma das fundadoras do projeto. Foi organizado um mutirão entre os alunos. “A Marielle era sempre a primeira a chegar e a última a sair. Uma liderança nata”, descreve a docente, que conheceu Marielle dando aulas de Catequese, alguns anos antes, para crianças e adolescentes na Paróquia Nossa Senhora dos Navegantes, em Bonsucesso.
Vítima de bala perdida
Marielle cursava o pré-vestibular da Maré quando deu a luz a uma menina. Hoje, com 17 anos, Luyara é aluna de Educação Física na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Na ocasião, a mãe se viu obrigada a largar os estudos e a trabalhar como educadora na Creche Albano Rosa, na Maré, para sustentar a filha. Dois anos depois, retomou o cursinho. Na ocasião, sofreu outro baque: perdeu uma amiga, recém-aprovada no vestibular, vítima de bala perdida durante confronto entre policiais e traficantes. Foi quando resolveu se dedicar à luta por direitos humanos. Em 2002, Marielle passou no vestibular da Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio), onde se matriculou no curso de Ciências Sociais. Uma das universidades parceiras do CPV da Maré concedeu bolsa integral a Marielle. “Ela sempre quis fazer Sociologia para entender melhor o mundo em que vivia”, revela a professora Cláudia.
Marielle conheceu Ricardo Ismael, seu orientador na monografia de conclusão de curso – sobre as desigualdades de renda no mercado de trabalho a partir das perspectivas teóricas dos economistas Celso Furtado e Carlos Langoni – em uma aula de Construção Liberal e Suas Críticas. “Lembro-me de uma aluna muito interessada na sua formação teórica e atenta ao processo de pesquisa. E, embora morasse longe e fosse mãe solteira, não era de faltar às aulas nem de atrasar suas tarefas”, afirma o atual diretor do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio. Terminada a graduação, a aluna ainda convidou seu orientador para dar um curso sobre Celso Furtado na Maré. O que Marielle Franco tem a ensinar aos jovens de comunidades carentes? “Os estudos abrem caminhos para a realização dos sonhos, para o envolvimento nas lutas por direitos e contra a desigualdade, e preparam para o ativismo e a carreira política”, responde o professor.
Mesmo com o tão sonhado diploma universitário em mãos, Marielle queria mais. O objetivo agora era o mestrado na Universidade Federal Fluminense (UFF) em Administração Pública. Intitulada UPP – A Redução da Favela a Três Letras, sua dissertação analisava a implantação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) sob a ótica da política de segurança pública do Estado do Rio. “Havia entre nós um clima de respeito e de esperança de vivermos uma sociedade mais digna, mais humana e mais igualitária. Tínhamos em comum a perspectiva de diálogo entre a academia e a militância em movimentos sociais. Marielle militava na Maré e eu, no Grupo Tortura Nunca Mais-RJ”, recorda a professora Joana Ferraz, orientadora da dissertação de mestrado, que conviveu com sua mestranda de janeiro de 2012, quando conversaram pela primeira vez sobre o projeto, até junho de 2015, data da entrega da versão final.
Em 2016, a socióloga que sonhava ser pesquisadora cedeu às pressões de seus correligionários do PSOL e tentou uma vaga na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Em pouco mais de 13 meses de mandato, apresentou 13 projetos de lei, um contra o assédio de mulheres em transportes públicos, outro pelo atendimento humanizado nos casos de aborto legal e um terceiro para a abertura de creches municipais no período noturno para os pais que trabalham à noite e não têm com quem deixar os filhos. Em fevereiro, ela foi nomeada relatora da comissão criada para fiscalizar a intervenção federal na segurança pública do Rio. No dia 10, publicou um texto em suas redes sociais denunciando a truculência do 41º Batalhão da Polícia Militar (PM) contra moradores da favela de Acari. “Dois jovens foram mortos e jogados num valão”, dizia um trecho da postagem. “Acontece desde sempre e, com a intervenção, ficou ainda pior”.
Nome de escola e biblioteca
Qual seria o próximo passo de Marielle Franco? Cursaria outra faculdade ou tentaria o doutorado? Ninguém sabe. Na noite do dia 14 de março, ela foi assassinada à queima-roupa, com quatro tiros na cabeça, no bairro do Estácio, a poucos metros da prefeitura do Rio. Homens em outro veículo atiraram pelo menos nove vezes contra o carro da vereadora, matando também o motorista, Anderson Pedro Gomes, de 39 anos. Uma assessora ficou levemente ferida. A polícia investiga a autoria e a motivação do crime: a principal hipótese é de execução. “Seu assassinato, meticulosamente planejado, a retirou fisicamente do front da luta. No entanto, sua memória e sua capacidade de resistir servirão para fortalecer a luta contra o poder opressor do Estado, principalmente nas diferentes causas nas quais ela militava, em defesa das classes populares, contra a violência nas favelas, na defesa dos LGBTs, entre outras tantas”, analisa a professora Joana Ferraz.
Como parte das homenagens póstumas, o prefeito Marcelo Crivella anunciou que vai batizar uma das escolas municipais do Complexo da Maré com o nome da vereadora Marielle Franco, para mostrar aos assassinos que “não foram capazes de apagar o nome dela da história do Rio de Janeiro”. Além disso, a Biblioteca Parque de Manguinhos, fechada desde dezembro de 2016, será reaberta com o nome da vereadora. “Acho que Marielle ficaria feliz e orgulhosa com essas homenagens. Mas se bem a conheço, gostaria mais ainda se nesta escola e biblioteca trabalhassem mulheres negras, faveladas, lésbicas e libertárias. A escola e a biblioteca deveriam ser lugares onde se pratique o pensamento de Rosa de Luxemburgo: ‘Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres’”, afirma o professor Ricardo Ismael, da PUC-Rio.
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