"Trabalho voluntário não pode servir de moeda para quitar obrigação da escola"
Entenda a polêmica em torno da proposta de Ensino Médio a distância debatida no CNE e quais podem ser os seus desdobramentos
PorLaís Semis
21/03/2018
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Jornalismo
PorLaís Semis
21/03/2018
Colaborou Soraia Yoshida
É fato: uma proposta de grande impacto no Ensino Médio brasileiro está sendo discutida pelo Conselho Nacional de Educação (CNE). O documento, com 21 páginas, foi apresentado pelo relator Rafael Lucchesi, membro do CNE e diretor-geral do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai). Entre outros pontos, a proposta estabelece a possibilidade de que até 40% da carga horária do Ensino Médio sejam feitos a distância (EaD). Entre as atividades que contariam como parte dessa carga horária fora da escola estão cursos, estágios, oficinas, trabalho supervisionado, atividades de extensão, pesquisa de campo, iniciação científica, aprendizagem profissional, participação em trabalhos voluntários, contribuições para comunidade e atividades pedagógicas orientadas pelos docentes.
A discussão em torno da proposta já avançou mais do que foi noticiado pela mídia (saiba mais a seguir), mas o “estrago” está feito. “O debate é importante, mas não da maneira como esse assunto foi tratado, com uma informação equivocada”, afirma Eduardo Deschamps, presidente do CNE e secretário estadual de Santa Catarina. Ele confirmou que a proposta está sendo avaliada pelo conselheiros, mas ainda em estágio inicial das discussões. “Não é um documento que está pronto para ser discutido de forma pública, ainda carece de alguns debates internos. Foi apresentada uma primeira versão e está longe de ser finalizada”, diz.
Desde o início do mês, o CNE vem discutindo como regulamentar as Diretrizes Curriculares Nacionais aprovadas na reforma do Ensino Médio. “Como a legislação já fala em trabalhar com Ensino Médio regular em modalidade de ensino a distância, o CNE precisa regulamentar a questão. O conselho não pode desconsiderar o marco legal”, diz Deschamps. Para ele, a tecnologia poderia muito bem atender ao formato do Novo Ensino Médio. “Obviamente essa proposta tem que ser regulamentada. Não é de qualquer maneira que vai se permitir ter um projeto de escola integral em que se precarize a forma de acesso”, explica o presidente do CNE.
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A primeira discussão sobre a proposta de Ensino Médio a distância teria tido início no dia 6 de março. Confrontado sobre a existência dessa possibilidade, o Ministério da Educação (MEC) afirmou desconhecer o assunto e adiantou que vetaria a proposta. Deschamps confirma que em nenhum momento o MEC apresentou um documento oficial nesse sentido. “Esse documento foi elaborado e discutido pelos conselheiros e principalmente pelo Lucchesi, que é o relator”, afirma. Embora conte com uma cadeira para o secretário de Educação Básica da pasta, Rossieli Soares, o conselho não teria recebido dele uma posição oficial do MEC. “Ele trouxe contribuições para o processo de discussão”.
O que a legislação já prevê sobre o tema
A discussão é um desdobramento da reforma do Ensino Médio. A lei prevê que os sistemas podem firmar convênios com instituições de educação a distância para cumprir as exigências curriculares da etapa. Também estava previsto que a oferta do itinerário de formação técnica e profissional pudesse ser realizado na própria instituição ou em uma entidade parceira. Essas instituições deveriam ter notório reconhecimento, ou seja, serem reconhecidas por sua capacidade de ensino. O decreto nº 9.057/17 também fala sobre a possibilidade de oferta da modalidade a distância para o Ensino Básico. Ela é prevista tanto para o Fundamental quanto para o Médio. No entanto, a oferta para o Fundamental se dá apenas em situações emergenciais, como estudantes impedidos de ir às aulas por motivos de saúde, que vivem em localidades que não dispõem de atendimento escolar presencial ou que estejam em situação de privação de liberdade [encarceramento]. Não há especificações sobre a oferta para o Ensino Médio, além do que diz a lei 13.415, que instaura a reforma.
O protocolo dita que as legislações nacionais passem pela regulamentação do CNE. “E como a lei do Ensino Médio traz novidades que têm impacto inclusive nas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), foi instituída uma comissão específica da Câmara de Educação Básica para se encarregar dos estudos dessas mudanças”, explica César Callegari, membro do Conselho. A comissão é formada por Rafael Lucchesi e Eduardo Deschamps. Atualmente, as diretrizes preveem que o nível médio possa ser ofertado na modalidade a distância em programas de Educação de Jovens e Adultos (EJA), Educação Especial e Educação Profissional e Tecnológica.
Em princípio, a proposta funcionaria como um regulador para o que está indefinido na lei. Sem a limitação, essa dedicação de carga horária externa poderia ser menor ou até maior.
A discussão vai além do que foi publicado
Um dos principais pontos de destaque nos trechos divulgados do documento foi a possibilidade de que atividades como participação em trabalhos voluntários e contribuições para comunidade pudessem valer como carga horária para a etapa. O conselheiro César Callegari afirma que já houve pedidos de vista e que a questão será pauta da próxima reunião do CNE. Ele adiantou que houve outras propostas de texto, inclusive a sua própria, estipulando que voluntariado não pode ser computado como crédito para abater o número de horas obrigatórias da escola. “Trabalho voluntário não pode servir de moeda para quitar obrigações educacionais”, diz Callegari. “Esse assunto especificamente está em fase final de discussão no conselho e coloca exatamente esses limites na proposta”.
Pontos de atenção
Alguns grandes pontos de interrogação nasceram com a lei que estabelece o Novo Ensino Médio - e parte deles ainda não tem uma resposta clara. O estabelecimento da carga horária mínima obrigatória de mil horas anuais - que distribuídas nos 200 dias letivos representariam 5 horas diárias de aula - coloca em debate a impossibilidade dos cursos noturnos de cumprir o que foi estabelecido.
Outro ponto ainda nebuloso envolve os itinerários formativos. A lei estabelece cinco percursos de flexibilização possíveis em diferentes áreas do conhecimento, sem a obrigação de que todos sejam ofertados. Assim, as escolas poderiam oferecer um único percurso ou até mesmo integrá-los. A proposta do Ensino Médio a distância poderia configurar, portanto, uma saída para as escolas que não conseguissem viabilizar essas mudanças de formato.
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O texto da proposta diz: “As atividades realizadas a distância poderão contemplar até 40% da carga horária total, podendo incidir tanto na parte comum quanto na flexível do currículo, desde que haja suporte tecnológico - digital ou não - e pedagógico apropriado”.
Callegari afirma que outras mudanças das Diretrizes Curriculares Nacionais também são pautadas pelo mesmo texto. É o caso das atuais 13 disciplinas da etapa serem elencadas nas DCNs não mais como disciplinas, mas apenas como uma referência às áreas do conhecimento. A medida viria para acompanhar a própria reforma do Médio e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) da etapa, que já é organizada por áreas do conhecimento.
Possíveis impactos do Ensino Médio regular EaD
Para Salomão Barros Ximenes, membro da Ação Educativa e professor de Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC (UFABC), a proposta não oferece uma solução que leve em conta a qualidade do ensino. “Ela oferece uma falsa solução, que é jogar o problema para baixo do tapete”, afirma. “Esses alunos estarão matriculados, mas na realidade ficarão mais distantes de fato de um processo educativo que seja relevante”.
A falta de garantia sobre a equidade de ensino também é uma questão para Callegari, começando pelo acesso à tecnologia - que hoje não está disponível em todas as escolas. Outro ponto preocupante seria a fragmentação do contato entre professores e alunos, que firma acessos e relações interpessoais imediatas. “A escola é um território de relações reais de grande importância. Parte do que aprendemos nela não está nos livros, mas na construção de respeito às diferenças e ao reconhecimento da diversidade. São elementos que não podem ser desenvolvidos adequadamente pelo aluno através de um computador”, cita. Além disso, o ensino a distância exige grande disciplina. “Esse processo poderia levar a um aprofundamento da exclusão e diferentes oportunidades para os brasileiros, dependendo dos seus níveis socioculturais”, analisa.
Para ele, as tecnologias devem ser usadas em favor da Educação e de maneira complementar, não como em substituição à escola e aos professores. “No meu modo de entender, é uma iniciativa anti-educacional”, diz. “Não merece prosperar e precisamos reagir contra ela”. Callegari defende a presença de educadores no processo formativo. “Todas as iniciativas que de alguma maneira fragilizam o professor e os profissionais da área representam um ataque à própria Educação”.
O que vem por aí
O texto da proposta do Ensino Médio a distância ainda é objeto de discussão no Conselho Nacional de Educação e não há sem prazo determinado para uma conclusão. O conselho possui autonomia para definir o conteúdo do documento. Após o término das discussões internas, a proposta ainda passará por audiência pública. Só depois de ajustes a partir das contribuições da audiência, o texto será encaminhado para análise do MEC - e posterior homologação ou não pelo ministro da Educação.
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