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Por dentro da BNCC de Língua Portuguesa

A Base avança e aprofunda o entendimento da língua oral e escrita como um instrumento de interação social, contextualizado, dinâmico e histórico. Mas, para trabalhar todas essas dimensões em sala de aula, é preciso estar atento a alguns pontos importantes

Autor: NOVA ESCOLA

Confira uma lista de itens sobre como trabalhar com as competências específicas. Ilustração: Rita Mayumi/Nova Escola

Levar os novos pressupostos trazidos pela Base à sala de aula é um desafio que passa, em primeiro lugar, pelo entendimento dos principais pontos da mudança. A segunda etapa é pensar em como essa teoria pode ser traduzida em atividades práticas, organizadas no planejamento das aulas, a fim de desenvolver as competências específicas que precisam ser consideradas no componente. Os itens abaixo sugerem formas de se trabalhar com as competências específicas. Confira a seguir.

Prática situada
Ao propor contextos em que os conteúdos de Língua Portuguesa devem ser passados aos alunos – por meio do estabelecimento dos campos de atuação --, a BNCC sugere que, na leitura e no estudo dos textos, sejam considerados os papéis enunciativos de quem produz, os gêneros predominantes e até mesmo os suportes, entre outras informações relevantes. Assim, é fundamental que, nas atividades da sala de aula, os estudantes sejam estimulados a não apenas ler e compreender os textos, mas a verificar quem os produz, para quem, com que finalidade. São as respostas a todas essas questões que contribuem para uma leitura mais produtiva.

Progressão dos conteúdos
A Base cita aproximadamente 170 habilidades que precisam ser trabalhadas nos alunos durante todo o Ensino Fundamental, porém, muitas delas são comuns a vários anos. Por isso, pode haver uma certa dificuldade em estabelecer uma progressão na forma como os conteúdos devem ser trabalhados. Uma sugestão é organizar as aulas a partir da escolha dos gêneros que serão tratados em cada ciclo, em interlocução com os campos de atuação. Os gêneros seriam, portanto, um primeiro elemento norteador, partindo dos mais simples para os mais complexos, conforme a capacidade de entendimento e análise do aluno.

Na prática 
Para abordar o campo da vida cotidiana nas séries iniciais, pode-se começar propondo o trabalho com bilhetes, no 1o ano, por exemplo, evoluindo, no 2o, para a análise, interpretação e produção de cartas. Já para abordar o campo da vida pública, na esfera midiática, o trabalho pode partir da leitura e da discussão de uma legenda de foto, para depois chegar ao lead e, mais tarde, ao artigo completo, considerando, assim, em ordem crescente, a complexidade textual desses conteúdos.

Escolha dos textos
Outro aspecto importante no que diz respeito à metodologia escolhida para se atingir os objetivos especificados na Base é a seleção dos textos. Afinal, a definição do gênero a ser trabalhado, dentro de cada Campo Temático, não basta. Ao decidir trabalhar o gênero “notícia”, por exemplo, é preciso saber de onde será extraído o texto a ser analisado em sala. Afinal, há muita diferença se ele vier de um jornal especializado ou de um veículo voltado para leitores infantis. Nessa abordagem, vale levar em conta a possibilidade que os alunos terão de interagir com o texto, de acordo com seus conhecimentos prévios.

Os diferentes usos da oralidade
Da mesma forma que propõe o ensino da produção escrita a partir de gêneros, a BNCC indica que o estudo da oralidade deve ser feito em situações de uso, observando o contexto de produção e recepção em que ocorrem. É importante que o aluno não só reconheça as diferenças em relação à modalidade escrita, mas que trate cada gênero oral com suas características, tanto na forma composicional como no estilo, respeitando as variedades linguísticas adequadas a cada contexto.

Na prática
Uma estratégia eficaz para motivar o processo de aprendizagem é trabalhar com os gêneros orais da mesma forma que se propõe o trabalho com leitura e produção escrita, compartilhando desde o início os objetivos pretendidos com os estudantes, de acordo com a prática social e de linguagem a ser explorada. É importante que esses objetivos estejam atrelados a um desafio a ser resolvido pelos alunos. Outro aspecto relevante diz respeito aos saberes prévios e aos temas de interesse pessoal dos estudantes, que podem ser tomados como um ponto de partida das propostas apresentadas em sala de aula. Conheça nesta reportagem os trabalhos de professores que já abordam essas habilidades.

Como trabalhar gêneros
Na prática em sala de aula, cabe ao professor garantir a apropriação pelos alunos das práticas comunicativas presentes na sociedade, a partir de um trabalho progressivo e aprofundado com os gêneros textuais orais e escritos. A Base incorporou novos gêneros com os quais os alunos estão bastante familiarizados. Porém, o próprio documento alerta para o fato de que conhecer o gênero não significa levar em conta suas dimensões ética, estética e política. É o professor quem vai guiar o aluno nesse sentido. O mais importante é fazer com que os alunos sejam capazes de compreender a intencionalidade, o contexto discursivo, os efeitos de sentido presentes nos mais variados textos, apresentando-os uma nova compreensão da língua, do seu funcionamento e uso. Também é papel do professor, em conjunto com a escola, fazer uma análise crítica dos muitos gêneros apresentados pela Base, para entender quais deles realmente terão relevância no grupo escolar. Conhecer os gêneros pelos quais os alunos de cada classe transitam pode ser o primeiro passo. Se os estudantes tiverem mais domínio de um determinado gênero que o próprio professor, uma alternativa é pensar em uma dinâmica, em classe, que favoreça a troca de conhecimentos.

Na prática
Na sala de aula, gêneros novos e outros já tradicionalmente usados na escola podem se complementar. O estudo das biografias, por exemplo, pode ser confrontado com as práticas de draw my life que se popularizaram na internet. Os alunos podem trazer o seu conhecimento no consumo e produção do gênero mais recente e o professor pode ampliar as perspectivas, mostrando que há outras formas de contar a história de vida, apresentando exemplos e conduzindo os estudantes a pensarem nas potencialidades de cada uma dessas propostas.

Multimodalidade na prática
A multimodalidade é uma realidade e precisa ser trazida para o ambiente escolar. Mas vale destacar a atenção ao suporte. Sempre que possível, é importante que o aluno leia o texto onde ele foi veiculado, para que possam ser replicados, em sala de aula, os modos de ler próprios desses meios. Na cartilha, textos diferentes têm o mesmo tratamento didático. Já a leitura nos suportes digitais, por exemplo, compreende condições e recursos diferentes: há a possibilidade de expandir e ocultar trechos dos textos, acessar links para áudios, infográficos animados etc.

Respeitar e apreciar as diferenças

Estima-se em mais de 250 as línguas faladas no país, um patrimônio cultural e linguístico que ainda está muito distante dos jovens que estão na escola. Nos PCNs, as questões relacionadas à diversidade estavam contempladas nos temas transversais. Já na Base, a orientação para o trabalho com textos que expressem essa diversidade aparece de forma mais estruturada. Para materializar a teoria em ações práticas, em sala, uma orientação é selecionar textos, nos diversos anos do Ensino Fundamental, que deem conta de abarcar essa diversidade, escolhendo entre autores clássicos e contemporâneos, regionais, nacionais e estrangeiros, incluindo os de origem africana, indígena etc.

Na prática
Confira uma lista de livros que podem ser usados para trabalhar a questão da diversidade, com foco nas culturas africana e indígena. O objetivo é que o aluno conheça e valorize as realidades nacionais e analise diferentes situações dos usos linguísticos.

Meu vô Apolinário. Daniel Munduruku. Editora Studio Nobel
O livro conta a história do menino Daniel e da convivência com o avô que lhe ensinou o orgulho de ser indígena, a reverência à tradição, o respeito à natureza, entre outros valores fundamentais. A obra deu a Daniel Munduruku a Menção Honrosa no Prêmio Literatura para Crianças e Jovens na Questão Tolerância, em 2003, concedido pela UNESCO.

A mulher que virou urutau. Olívio Jekupe e Maria Kerexu. Editora Panda Books
Traz a lenda indígena sobre a origem do pássaro urutau, a ave que, para se defender dos predadores, fica completamente imóvel nos troncos das árvores. A história gira em torno de duas irmãs da aldeia que se apaixonam pelo mesmo guerreiro e é contada em português e em guarani.

A pescaria do curumim e outros poemas indígenas. Tiago Hakiy. Editora Panda Books
A obra retrata a beleza da floresta amazônica por meio de poemas escritos pelo descendente do povo sateré mawé e pelas coloridas ilustrações de Taísa Borges.

Puratig - o remo sagrado. Yaguarê Yamã. Editora Peirópolis
Reúne sete histórias que compõem a tradição dos índios sateré mawé, que ainda vivem nos Estados do Amazonas e do Pará. As ilustrações foram feitas pelo próprio autor, especialista em pintura corporal, e pelas crianças da tribo.

As fabulosas fábulas de Iauaretê. Kaká Werá Jecupé. Editora Peirópolis
Composto de 16 histórias, o livro traz algumas fábulas relativamente conhecidas, de origem indígena, além de histórias criadas pelo autor, que ajudam a resgatar o patrimônio cultural de quatro etnias distintas: tupis, kadiweus, mundurukus e bororos.

Olelê - uma antiga cantiga da África. Fábio Simões. Editora Melhoramentos
Conta a história de uma cantiga, originária da República Democrática do Congo, região que o autor visitou pessoalmente. A canção cita palavras de origem bantu introduzidas no Brasil na época da escravidão e fala sobre uma enchente que acontece em um grande rio local e que obriga a população a enfrentar a correnteza e se mudar para outro lugar.

Sikulume e outros contos africanos. Júlio Emílio Braz. Editora Pallas
Resgata sete histórias africanas, repletas de poesia, envolvendo romance, aventura e terror. As ilustrações são de Luciana Justiniani, que vive em Moçambique.

Omo-Obá - histórias de princesas. Kiusam de Oliveira. Editora Mazza
Apresenta ao leitor seis princesas que são, na realidade, divindades da mitologia iorubá, a exemplo de Oiá, Olocum, Oxum e Iemanjá. A história versa sobre os dons especiais de cada uma e de como devem ser aplicados para não causar danos a elas e nem às outras pessoas.

Angola Janga. Marcelo D'Salete. Editora Veneta
É um romance histórico em quadrinhos que fala de Zumbi e de outros líderes da resistência aos ataques militares holandeses e às forças coloniais portuguesas, organizados em Angola Janga, em Pernambuco, no final do século XVI

Escuta ativa
Favorecer a escuta ativa é algo que aparece como um direcionamento claro na BNCC. A proposta é oralizar o texto escrito, com a leitura em voz de alta de um texto, por um leitor mais experiente. O recurso deve facilitar a compreensão do texto no caso das crianças que ainda estão em processo de alfabetização ou, nos anos finais do EF1, favorecer a interpretação de textos mais complexos e ainda desconhecidos dos alunos. É importante, no entanto, que, no processo de progressão dos conhecimentos, os alunos possam participar de atividades escuta, leitura compartilhada e leitura autônoma – em silêncio e em voz alta – para atingir a proficiência desejada.

O que não pode ficar de fora
A BNCC traz quadros que são propostos para detalhar e explicar o que deve ser contemplado em cada um dos eixos ou, mais especificamente, em cada uma das práticas de linguagem. No dia a dia da sala de aula, será fundamental considerar essas dimensões para que os conteúdos propostos e as habilidades sejam contemplados. Esse mesmo movimento de indicar as dimensões pelas quais as práticas devem ser abordadas são apresentadas para as práticas de leitura, produção de textos orais e escritos, oralidade e análise linguística/ semiótica. 

Na prática
Vamos tomar como exemplo o eixo leitura e o quadro disposto às páginas 70, 71 e 72 da BNCC, que afirma sob quais perspectivas essas práticas devem ser abordadas. Nesse exemplo, mencionam-se a reconstrução e reflexão sobre as condições de produção e recepção dos textos pertencentes a diferentes gêneros e que circulam nas diferentes mídias e esferas/ campos de atividade humana; a dialogia e relação entre os textos, a reconstrução da textualidade, recuperação e análise da organização textual, da progressão temática e estabelecimento de relações entre as partes do texto, a reflexão crítica sobre as temáticas tratadas e validade das informações, a compreensão dos efeitos de sentido provocados pelos usos de recursos linguísticos e multissemióticos em textos pertencentes a gêneros diversos, as estratégias e (os) procedimentos de leitura e, finalmente, a adesão às práticas de leitura.